Novembro de 1992.
Terminava o quarto ano da Faculdade de Medicina da PUCRS e, por esses, boa parte dos meus colegas (e eu junto) já pensávamos na especialidade em que gostaríamos de nos especializar quando nos formássemos. Como a concorrência para praticamente todas as opções era grande, muitos dos meus colegas trabalhavam em prol de seus futuros, fazendo estágios, tentando ficar conhecidos não só dentro dos serviços das respectivas especialidades no hospital em que estudávamos quanto também nos outros hospitais. A melhor forma de aparecer nos outros hospitais, se tornar conhecido, eram os estágios de férias.
Como as aulas terminavam no final de novembro e tínhamos férias até o começo de março do ano seguinte, dezembro, janeiro e fevereiro eram meses disponíveis para estagiar voluntariamente nos hospitais. Se alguns dos colegas estagiavam nos três meses de férias, eu era mais "moderado": estágio de férias só em dezembro, os outros meses era de férias na praia. Principalmente naquele verão: aquelas seriam as últimas grandes férias de verão, porque no ano seguinte eu estaria já me preparando para o final da faculdade e não teria férias devido aos estágios curriculares da faculdade, nas grande áreas da medicina. Dessa forma, as férias entre o quarto e o quinto ano da faculdade eram as últimas, e deveriam ser aproveitadas. Mas antes do verão na praia, tinha dezembro como o mês que faria estágio.
Naquele momento da faculdade, eu planejava ser cirurgião.
Pensando nisso, e como queria conhecer como funcionava o serviço de cirurgia de outro hospital (eu era da PUC), me candidatei e consegui um estágio em cirurgia geral da Santa Casa de Porto Alegre. Como o dia primeiro de dezembro era uma quinta-feira e no final de semana eu iria visitar um namorada (namoro que durou um final de semana, mas isso é outra história), combinei com o cirurugião-chefe de onde eu estagiaria que começaria na segunda-feira seguinte, dia cinco. Os meus colegas que iriam estagiar ali junto comigo começaram no dia primeiro mesmo.
Vale dizer que o tal do cirurgião era famoso pelos seus ataques de cólera, por brigar com todos, por impor medo em todos. Eu conhecia a fama, mas não estava nem aí. Comigo ele tinha sido até que legal.
Segunda-feira de manhã.
Primeiro dia de férias, primeiro dia de estágio.
Chego na Santa Casa logo cedo e vamos para o bloco cirúrgico. Primeira cirurgia da manhã, sou escalada como instrumentador. Começa a cirurgia e quem está operando é a R2 (residente de segundo ano de cirurgia). De cara, por nada (ou quase nada) ela xinga o R1, xinga o doutorando, xinga o outro doutorando, olha para mim para me xingar e não me conhece, ficando quieta. Assim é toda a cirurgia: estresse e mais estresse. Um horror.
A semana avança, e todos estão tensos. O clima não é dos melhores. O cirurgião, por outro lado, apesar da fama de brigão, me parece super-tranqüilo. O resto da equipe é que parece à beira de um ataque de nervos. Chega quinta-feira, vamos passar o dia no bloco cirúrgico novamente. O clima não muda. No começo da tarde, momento de descanso no vestiário do bloco cirúrgico. Há uma janela que dá para a praça interna da Santa Casa, onde existem árvores que dão sombra e bancos para ficar embaixo das árvores. O céu é azul, e o sol brilha.
Estágio de férias.
Estágio ou férias?
Férias!
Não tenho dúvidas: hora de ir para casa. Abandono ali o estágio e, com ele, o meu desejo de ser cirurgião.
Sem falar que não vou precisar operar intestinos...
Lembrei disso hoje pela manhã quando passei justamente pela mesma praça e olhei para a janela onde é (ou era, não sei) o bloco cirúrgico. Pensei no tempo que passou, nos rumos que a vida tomou e que, de uma maneira ou outra, acabei trabalhando no hospital em que abandonei a cirurgia para entrar de férias.
Até.