domingo, abril 12, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Oitavo Dia)

O coronavírus já tinha alterado alguns dos meus planos. Em 2003.

A SARS, causada por um coronavírus que veio da China, surgiu no final de 2002 e parou os hospitais em Toronto naquele momento. Isso resultou em um ano de atraso da minha ida para os Pós-Doutorado (que, em realidade, ia ser para fazer o trabalho de doutorado mas, devido ao tempo que levou entre surgir o convite e eu efetivamente ir para lá, o que deu tempo de terminar o doutorado o Brasil, acabou sendo pós-doutorado). Foi minha primeira experiência com os efeitos de um coronavírus, mas não é disso que quero falar.

Quero falar de gavetas. E da rotina.

Ambas são, mesmo subestimadas e até injustiçadas, parte fundamental de nossas vidas.

Concluí isso, de forma definitiva, há mais de quinze anos, quando cheguei para morar em Toronto para realizar meu pós-doutorado. Após uma semana morando em um dormitório estudantil que servia de hostel durante as férias da Universidade, aluguei o apartamento que seria minha casa durante os dois anos que em vivi no Canadá. O endereço era 35 High Park Avenue, Apt 2105. Ficava a menos de 100m do High Park, o maior parque de Toronto. Ficava no vigésimo primeiro andar e, infelizmente, a vista não era para o parque. Ainda assim, era uma grande vista.

A mudança foi em partes, afinal eu estava me mudando para um apartamento vazio e não tinha carro. As malas levei de metrô. Comprei o básico no Walmart e na Canadian Tire.  O supermercado, o No Frills. Após a mudança, a primeira revelação: não havia gavetas em casa (até porque não tinha móveis, apenas uma cadeira de praia, e um colchão. Nos primeiros dias, usei a caixa do forno de micro-ondas como mesa de cabeceira, e – no primeiro sábado no apartamento novo – saí circulando pelo bairro e, ao encontrar um garage sale, comprei um tapete, um abajur e – justamente – uma mesa de cabeceira com uma gaveta.

Gavetas são importantes por suas múltiplas funções.

Uma vida sem gavetas é uma vida onde não podemos guardar as pequenas coisas que nos são queridas, fotos, guardanapos de papel com filosofias e descobertas feitas à volta de uma mesa de bar, relógios que não funcionam mais, cartões de Natal antigos. Ou mesmo canetas, documentos, antigas fotos 3x4, etc. 

Gavetas são também um depositário de nossas memórias. 

Assim como a rotina.

Em tempos de distanciamento social, percebemos a importância da rotina, que é fundamental para a sanidade do ser humano. Sem a rotina, sem método, sem rituais, seríamos ainda selvagens correndo atrás de animais selvagens e sendo nômades. Foi a rotina que trouxe a civilização. A civilização surgiu também da hipocrisia, mas isso é assunto para outra oportunidade. É  a rotina que nos dá referências, rumo. Sem ela, ficamos perdidos, como se suspensos no ar, sem ao menos saber onde ir. 

Uma das angústias desse período de quarentena é termos que criar uma rotina de trabalho, de convivência. Não estamos de férias, estamos forçados a ficar o maior tempo possível em casa, para nossa proteção e para protegermos os outros. Como ser produtivo nesse momento de incerteza?

Antes de mais nada, temos que ser tolerantes conosco mesmos e com os outros em nossa volta. Não nos cobrar demais, não ser tão graves, por esses dias. Tentar manter o moral alto enquanto atravessamos a tempestade.

Que, certamente, vai passar.

Até. 

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