domingo, julho 31, 2022

A Sopa

Não sou um cara religioso. 

Acredito no princípio de que é natural fazermos o bem, sermos corretos e justos com os outros, e que isso é o que realmente importa. Tratar os outros como eu gostaria de ser tratado, que é o equivalente ao dito cristão ‘amar ao próximo’.  E tenho tentado viver sob esse preceito. Sempre pensei que – se vivêssemos dessa forma – não haveria necessidade de uma religião para nos dizer exatamente isso. Mas sempre respeitei as crenças de todos, acima de tudo.

 

Em outro conceito relacionado, durante um tempo tive - para mim – a teoria de que a religião surgiu como forma das pessoas lidarem com a morte. A crença numa vida após essa nos tranquilizaria, nos daria conforto no momento da perda de um ente querido e, talvez, até um sentido para o que vivêssemos aqui. Antes de tudo, porém, eu sempre fui talvez o pior tipo de pessoa: a que não sabe.

 

Acreditar em Deus com convicção (fé), ou definitivamente não acreditar são posições (situações) confortáveis, pois o crente e o ateu sabem onde estão, estão tranquilos em sua crença ou não crença (ou a crença da não existência). O meu caso, por outro lado, foi de sempre estar na desconfortável situação de não saber o que pensar. Na maior parte do tempo, contudo, isso não incomodava.

 

Meu pai morreu na semana que passou (mas não para mim).

 

Vim enrolando até aqui esse texto por dificuldade em escrever a frase acima. Colocar no papel parece tornar mais real do que realmente é, mas não há como evitar.

 

Ele estava doente, com várias condições médicas que – isoladas – não eram de risco, mas – somadas – o tornavam muito frágil, como caminhar no gelo fino. Qualquer passo em falso poderia colocar tudo a perder. Infelizmente sua qualidade de vida vinha bem ruim nos últimos dois anos e meio, desde o início da pandemia. Por uma piora no quadro geral no último mês, acentuada há pouco mais de vinte dias, acabou internando no dia treze de julho e dali só piorou, com algumas pequenas melhoras antes de piorar muito e descansar definitivamente.

 

Realmente descansou, afirmo triste, mas resignado.

 

Em seus últimos momentos, já sedado, sem sofrer, ainda pude me despedir dele agradecendo por tudo o que ele foi e representou para mim, para a família, e que honraríamos a memória dele seguindo a vida, mas sempre lembrando e contando suas histórias. Pudemos todos nos despedir dele, que agora descansa.

 

Estivemos junto dele no hospital, nos seus últimos dias, minha mãe, meu irmão e eu. Meu irmão estava em Porto Alegre – por uma estranha e talvez cósmica coincidência – nas três últimas semanas de vida dele, e acompanhou e ajudou e esteve junto a ele e a nós. Minha mãe, incansável nos últimos dois anos com ele. Todos fizemos o que podíamos, e estamos – sim – tristes, mas com a tranquilidade de saber que estivemos sempre ao lado dele, por amor.

 

A despedida dele, que morreu na terça-feira à tarde, foi na quarta-feira que passou, dia vinte e sete de julho.

 

E foi um tsunami de emoções, como podem imaginar.

 

Eu, que não chorava há mais de trinta anos, venho nessas últimas duas semanas vivendo como na música do Zeca Baleiro, Ando tão à flor da pele / Qualquer beijo de novela me faz chorar’. É o processo, eu sei.

 

O velório e a cerimônia de despedida foram comoventes. E aí vive-se aquelas situações paradoxais da vida: um momento de tristeza, certamente o mais triste da minha vida até aqui, foi também um momento de felicidade imensa, de conforto, de sensação de pertencimento, e de orgulho.

 

As coroas de flores, enviadas por amigos dele, pelo Veleiros do Sul, clube que era sua segunda casa e cuja bandeira estava cobrindo o caixão, pelo condomínio onde ele morava, pelo serviço de Pneumologia do Hospital da PUCRS onde trabalho, pela School of Rock (onde a Marina e eu somos alunos e que é uma grande família) e Banda The Others (com quem toco na School), todas me emocionaram demais. Mais do que isso, as pessoas que puderam estar presentes ou enviaram uma palavra de conforto, por causa dele em especial, mas também por causa da minha mãe, do meu irmão e minha, amigos e familiares, significaram muito para nós. Mostraram (reafirmaram) o grande cara que ele foi, e – mais – que nós estamos no caminho certo. O carinho de todos aqueceu nossos corações, e agradecemos por isso.

 

Como disse, saímos – evidentemente – muito tristes, mas também confortados e felizes por saber uma vez mais como ele era querido, que temos pessoas próximas a nós que são muito especiais, e que temos que – sempre – estar cada vez mais próximos, porque o que vale na vida são os momentos que passamos juntos. 

 

A manhã seguinte à despedida foi de recomeço.

 

Acordei cedo para ir trabalhar e, ao lavar o rosto, me olhar no espelho, e mesmo ao longo de todo o dia e até agora, três dias depois, sinto a presença dele o tempo todo, como se realmente estivesse comigo (está) em todos os meus passos. Sensação de certa forma estranha e reconfortante. Como se estivesse me protegendo.

 

Como o Super-Homem, que é o que ele sempre foi e será para mim.

 

Até.

 

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