Confesso que, quando no começo do ano o Inter contratou o Abel Braga como treinador, eu levei medo. Homem de pouca fé, eu tinha minhas razões, afinal eu ainda tinha viva na memória a lembrança de 1989, quando o Inter, precisando apenas de um empate contra o Olímpia na semifinal da Libertadores da América, jogando no Beira-Rio, perdeu o jogo no tempo normal e depois no pênaltis, meses depois de ter perdido a final do campeonato brasileiro para o Bahia, tendo perdido o primeiro jogo em Salvador e – novamente no Beira-Rio – precisando fazer apenas um gol para ser campeão, empatou em zero e viu o adversário ser campeão. O comandante? Abel Braga.
Mas não restava nada a não ser desejar sucesso ao treinador, que pegava um time montado pelo agora técnico do São Paulo, Muricy Ramalho. Começamos bem, mas perdemos o Campeonato Gaúcho para o co-irmão, que tinha um time visivelmente mais fraco, em dois empates, em zero no Olímpico e em um gol no Beira-Rio. Não foi bom, admito.
Lá de Toronto, acompanhava os jogos, na medida do possível, ouvindo pelo rádio via internet. Iniciou o campenato brasileiro enquanto avançávamos na Libertadores. Chegou a Copa de Mundo, os campeonatos pararam para assistir a copa, e voltei ao Brasil. Em Porto Alegre, com o final da copa, o Inter jogou sua passagem para as semifinais da Libertadores da América com a LDU, base da seleção equatoriana. Havíamos perdido o primeiro jogo, ainda antes da copa, por dois a um. Assisti a vitória do Inter pela tevê.
Sou sócio do Inter desde 1999, quando foi montado um grande time cuja estrela principal era o Dunga, atual técnico da seleção brasileira. Com esse time, chegamos à semifinal da Copa do Brasil, contra o Juventude de Caxias do Sul, primeiro jogo lá, empate em zero e segundo jogo no Beira-Rio. Naqueles dias, dos dois jogos, eu não estava em Porto Alegre, e acompanhava via internet (e telefone). Na noite segundo do jogo (ia ser barbada, jogando em casa, etc) eu estava justamente voando de volta ao Brasil. Ao chegar em Guarulhos, enquanto esperava o vôo de conexão para Porto Alegre, corri para ver um jornal do dia. Na capa, Juventude 4 X 0 Inter…
Mas dizia que sou sócio desde 1999. Quando fui para Toronto, achei que não era justo eu ficar pagando mensalidade durante o tempo que não estava aqui, e suspendi minha associação. Quando voltei, estupidamente, achei que pareceria “oportunismo” me reassociar agora que o Inter estava quase na final da Libertadores. Besteira, já que quando o time estava por baixo eu sempre me mantive em dia com as mensalidades. Mas assim fiz. E me arrependi, claro.
Antes do primeiro jogo, em São Paulo, o Paulo – meu cunhado – me ligou perguntando se eu queria ir no jogo, pois ele tinha a chance de conseguir ingressos através de um colega de trabalho. Claro que sim, respondi. Eu tinha que ir no jogo final.
O jogo no Morumbi foi como todos sabem. Ganhamos de 2 x 1 com sobras. O resultado “saiu barato” para os paulistas, que certamente entraram em campo se considerando campeões. Arrogância tricolor, me disseram conhecidos. Faltava o último jogo, no Beira-Rio, e precisávamos apenas de um empate. O São Paulo, um grande time, tentando o tetracampeonato da América, mas com um retrospecto ruim contra o Inter. E nós, precisando de um empate, tentando superar a Síndrome da Tragédia, cultivada por episódios como os que eu citei acima. Não poderia ser mais tensa a decisão.
Com um número de associados acima de 44.000, todos com acesso livre ao estádio, o número de ingressos à venda era pequeno, e filas começaram a se formar três dias antes de iniciarem a venda dos mesmos. Tanto foi assim, que decidiram antecipá-las porque o número de pessoas na fila superava em muito o número de ingressos disponíveis. Loucura total. Cambistas vendiam ingressos com ágio de 800%! Ninguém queria perder a grande final.
Aquilo que era um ingresso certo, tornou-se dúvida. Que só seria desfeita momentos antes do jogo, porque o contato não os garantia e só saberia a poucas horas do início. Incerteza e ansiedade. O dia do jogo se aproximava e nenhuma informação nova. A única certeza é de que eu não poderia perder o jogo. Hora de acionar o plano B. Alguns telefonemas para tentar descobrir algum amigo de amigo que fosse sócio e por alguma razão não pudesse ir e me emprestasse sua carteira de sócio.
Falo, então, com um grande amigo de muito anos que oferece a sua carteira de sócio, porque achava que não iria chegar a tempo no estádio: estaria trabalhando numa cidade vizinha até às 20h, e os portões fechariam às 21h. Não teria tempo de entrar no estádio. “Se não posso ir, pelo menos alguém vai no meu lugar”, diz ele. Reluto em aceitar a oferta, pois não acho justo. Digo que aceito só em último caso, caso não consiga o ingresso.
Dia do jogo. Tensão no ar. Ruas tomadas por bandeiras, pessoas passam com a camisa do time. A sensação de ‘chegou a hora’ misturada pelo temor da ‘Síndrome da Tragédia’. Pela manhã, situação do ingresso ainda indefinida. Trabalho, mas o foco já está às margens do Rio Guaiba. Começo da tarde, vou para casa aguardar. Hora limite para acionar o plano B. Dezesseis horas, faltam seis horas para iniciar o jogo, e nada do telefonema salvador. Hora da ação.
Saio de casa e, no caminho, deixo uma mensagem para o meu cunhado: ‘Plano B em andamento, qualquer alteração me avise que aborto a missão’. Nenhuma resposta. Pego a BR116 para a cidade vizinha e aí para o Hospital de Pronto Socorro local, onde está o amigo está de plantão e com a carteira de sócio. Chego no local, nos abraçamos e penso em perguntar se ele sabe o significado desse gesto dele. Não o faço: ele sabe. Nos despedimos e rumo de volta à capital dos gaúchos. Nesse meio tempo, converso com o meu cunhado e marcamos o local de encontro para irmos ao estádio. Pego um táxi até o local marcado, distante ainda do estádio. Somos três que vamos juntos. Chove uma garoa fina. Compramos capas de chuvas plásticas, basicamente um saco de lixo com corte para os braços e para a cabeça .
Chegamos três horas antes do início do jogo, e levo duas até entrar no estádio. Arquibancada superior, no lado oposto ao placar eletrônico. Nesse momento, já me perdi dos dois companheiros iniciais e estou junto com um amigo que veio de São Paulo apenas para o jogo e que vai voltar na manhã seguinte e um colega do hospital, colega esse que momentos antes de os times entrarem em campo pede para eu guardar o seu lugar, diz que vai ao banheiro e nunca mais o vemos. Não sei se passou mal e foi para casa, se nos desencontramos ou se encontrou algum outro amigo. Ainda agora não tenho notícias dele.
Começa o jogo, nervoso.
O São Paulo inicia melhor, pressiona. Aos poucos, o Inter equilibra o jogo e passa a ser melhor, até que Rogério Ceni (para quem cantávamos, antes do jogo, “ado, ado, ado, o Rogério é colorado”) solta a bola e Fernandão faz um a zero. Festa. Cantamos muito, minha voz já está nas última. Termina o primeiro tempo e somo campeões. “Faltam quarenta e cinco minutos para a América”, comento.
Começa o segundo tempo e o São Paulo empata. Tensão novamente, até que Tinga coloca o Inter na frente de novo. Festa, loucura. Na comemoração, Tinga leva o segundo cartão amarelo e é expulso. O ânimos arrefecem. Muricy Ramalho coloca atacantes, os paulistas pressionam até o novo empate: 2 x 2. Se fizer mais um gol, vai para prorrogação. Abel Braga coloca zagueiros. O lance agora é segurar. Chutão pra tudo o que é lado. Falta pouco, mas a pressão paulista é intensa. A única coisa que faço é fazer sinal e gritar ‘Acabou, acabou!”. O momento é tão tenso que antes do juiz apitar o final ninguém consegue gritar o tradional ‘É campeão’ nem mesmo o ‘ai, ai, aiai, tá chegando a hora’. Nada. Todos olhamos para o relógio esperando o final do jogo, alguns ainda temem a Síndrome da Tragédia, Abel Braga olha para cima e se pergunta ‘Por que tanto sofrimento, meu Deus?”.
Acaba o jogo. A América é vermelha.
O mundo sabe disso.
Festa, festa e festa.
“Ô Barcelona, pode esperar,
A tua hora vai chegar!”
Até.
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