Perdido no Dilúvio, uma história fictícia.
Admito que o pessoal estava exagerando. O comentário geral por todos os lados era de que não se respeitava mais ninguém, e de que “isso não vai acabar bem”. Mas a maioria nem dava bola para aqueles que, tementes, avisavam que “um dia desses Deus se cansa de tanta maldade junta e nos pune”.
Eu, no meu canto, procurava evitar incomodações. Não me indispunha com os “caras maus” nem deixava de ouvir os alertas dos mais velhos. Ficava em cima do muro, se preferirem assim. Mas não me sentia à vontade em meio aquela bandalheira que havia se tornado nosso povoado, mais um entre muitos onde a corrupção, a violência e as más condutas eram agora a regra. Não podia dar em coisa boa mesmo.
De vez em quando, sem ser notado, saía do centro e me afastava do movimento, indo ver o trabalho do velho Noé, que estava construindo uma grande embarcação. Ele não tinha muita experiência no assunto, indústria naval, mas trabalhava com uma convicção de veterano. E pressa. Dava a impressão de que ele corria contra o tempo. Vez e outra, seus filhos o auxiliavam, mas quase sempre trabalhava sozinho, de sol a sol, sem esmorecer e com uma energia impressionante, visto sua idade.
Naquela época, tinha – com certeza – quinhentos anos de idade. Não surpreende, conhecendo-se sua família. Noé, filho de Lameque, era neto de Matusalém, o homem que mais viveu, contavam os livros de história. Eu, com os meus trinta e dois, já ficaria feliz se vivesse, digamos, uns setenta anos, desde que tivesse saúde. Se conseguisse ainda me tornar carpinteiro e construir um barco do tamanho desse que Noé estava construindo, ficaria mais que satisfeito. Porque vocês sabem, Noé era lavrador, e essa mudança de ofício na idade dele era surpreendente. Por outro lado, se eu vivesse tanto, também era capaz de mudar de profissão. Imagina fazer a mesma coisa por quase meio milênio! Tinha mais é que mudar mesmo, ninguém teria coragem de chamá-lo de inconstante, afinal de contas.
Conforme passavam os dias, o barco ia tomando forma, e se revelava uma grande arca. Não tinha mastro, e me perguntava como ele ia resolver o problema da propulsão da embarcação. Será que usaria remos? Não dava a impressão, e mesmo que - para movimentar tamanha arca – seria preciso de muita gente. Ele devia ter alguma carta na manga, algo que eu ainda não conhecia. Teria que esperar um pouco mais para descobrir. Eu? Entendia um pouco do assunto, sim, mas conhecia o Noé só de vista, assim de nos encontrarmos no mercado e nos saudarmos de longe, nada mais, e não me sentia muito à vontade para perguntar.
O verão terminara, o outono já estava encontrando suas temperaturas típicas, noites e manhãs mais frias e temperaturas agradáveis durante a maior parte do dia. A arca estava quase pronta, e os boatos eram de que Noé sabia mais do que a maioria de nós, comuns mortais. Boatos sobre a razão da construção da arca era o que mais tinha. Falavam de tudo. Até que Noé ia fundar uma igreja, algo como “Igreja da Arca da Salvação”. Eu não acreditava, afinal de contas ele era conhecido pela sua retidão de caráter e senso de justiça.
Mais ou menos na mesma época em que a arca ficou pronta, todas as previsões eram de que estava por chegar uma frente de baixa pressão com uma linha de instabilidade significativa. Ia chover por vários dias. Na taverna que eu freqüentava, ouvi alguns fazendo graça e lembrando que não se podia confiar nas previsões do tempo. Eu tinha aprendido com o tempo não se brincava, e achei que era melhor dar uma conferida com mais atenção no que estava por vir. Saí para a rua, olhei o céu. Algumas nuvens negras no horizonte, soprando um vento quente que vinha do sul. O sol havia nascido bem vermelho naquele dia, lembrei de quando fui logo cedo pegar água no poço e o sol recém despontava no horizonte, indicando chuva.
Dali, decidi ir direto ver como estavam as coisas com o Noé. No caminho, começou a chover, primeiro uma chuva fina que logo aumentou em intensidade – até granizo caiu nesta hora. Chegando próximo à casa dele, notei um estranho movimento,. Ao perceber o que estava acontecendo, não pude acreditar. Em meio à chuva, que começava a formar poças nas ruas, estava lá – pronta – a arca, e nela embarcavam… animais?!. Um casal de cada espécie, parecia. Também em frente à ponte de embarque, estavam Noé, sua esposa, seus filhos e noras, controlando a entrada, verificando item por item tudo o que devia ser embarcado. Pareciam se preparar para uma longa viagem. Como assim? O que eles sabiam que eu não sabia?
A chuva não parava nem diminuía em intensidade, e agora já estava em minhas canelas. Quando todos os animais já haviam sido embarcados, a chuva acumulada já quase fazia a arca flutuar, e estava na altura da minha cintura. Já tinha me dado conta que a coisa estava ficando complicada para mim, e talvez para todos que não estivessem em lugares altos ou dentro de um barco. “Noé já sabia que isso ia acontecer!”, não pude deixar de pensar, ao ver a grande arca – com seus familiares e um grande zoológico dentro – começar a ter sua ponte de embarque içada pelos filhos de Noé.
Foi neste instante que – com dificulades pelo volume de água – avancei e me fiz ser visto. Notei que Noé cochichou por alguns instantes com sua esposa e logo depois mandou desceram a ponte de embarque e disse:
- Sobe, enquanto há tempo…
- Para onde estais indo? - perguntei, já subindo.
- Para onde, só Deus sabe, pois foi determinação dele que viéssemos. Mas podes estar certo de que – fora da arca – as coisas vão ficar bem molhadas…
Embarquei junto com a família de Noé e com um casal de animais de cada espécie para uma viagem para a qual não tinha me preparado (Vamos parar em praias? Será que cruzeiro não é muito entediante?) e sem ter idéia onde estava indo nem quanto tempo ela duraria. Ao menos estava seco e protegido.
Uma coisa era certa, contudo: teria muitas histórias para contar.
(uma história antiga num final de semana de trabalho...)
Até.
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