domingo, maio 29, 2022

A Sopa

Pessoas tem morrido.

 

Comentário inútil por óbvio. Todos sabemos que pessoas morrem todos os dias, desde o início dos tempos. É a ordem natural das coisas, é da vida. Caminhamos todos os dias em direção a ela a partir do dia em que nascemos. Vida é isso mesmo, o que fazemos neste intervalo entre o nascer e o morrer. E não consigo não lembrar de Jorge Luis Borges e sua ‘Milonga de Manuel Flores’ (que foi musicada pelo genial Vitor Ramil):

 

Manuel Flores va a morir,

eso es moneda corriente;

morir es una costumbre

que sabe tener la gente.

 

Y sin embargo me duele

decirle adiós a la vida,

esa cosa tan de siempre,

tan dulce y tan conocida.

 

Miro en el alba mis manos,

miro en las manos las venas;

con estrañeza las miro

como si fueran ajenas.

 

Vendrán los cuatro balazos

y con los cuatro el olvido;

lo dijo el sabio Merlín:

morir es haber nacido.

 

¡Cuánto cosa en su camino

estos ojos habrán visto!

Quién sabe lo que verán

después que me juzgue Cristo.

 

Manuel Flores va a morir,

eso es moneda corriente:

morir es una costumbre

que sabe tener la gente.

 

Como disse o sábio Merlin, morrer é haver nascido. Verdade inquestionável e perturbadora, assim como a afirmação de que sin embargo me dói dizer adeus à vida, essa coisa de tão de sempre, tão doce e tão conhecida. É um pensamento antigo e, de certa forma recorrente: morrer é um desperdício... tanta história que se vai, tanto o que se perde. 

 

Paciência, como costumo dizer.

 

Esses pensamentos afloram quando morre alguém conhecido, mais ou menos próximo, e chegar aos cinquenta anos tornam os mais próximos, estatisticamente falando, ainda mais próximos. Chegamos numa fase em que estamos testemunhando o ocaso de mestres, de professores que viraram amigos, também de familiares, e nos olhamos no espelho e vemos que a nossa vez vai chegar em algum momento no futuro.

 

Não que não soubéssemos que isso aconteceria, mas a confiança cega na imortalidade da juventude não permitia que vislumbrássemos nossa mortalidade ou finitude, mesmo que em uma noite de inverno o sono vencesse enquanto voltávamos para casa e um carro estacionado estivesse no caminho exatamente do meu lado e eu acordasse treze dias depois em uma UTI sem entender muito bem o que havia acontecido, e as lembranças daqueles dias fossem vagas e confusas, entre ver um campo verde em um dia de sol e saber que estava em um hospital.

 

A vida sempre segue seu caminho, independente de nossas vontades.

 

Pensei nisso hoje após uma troca de mensagens com amigos daquele tempo, em que éramos estudantes de segundo ano de medicina, e o comentário “pois é, estamos ficando velhos”  apareceu. Estamos, realmente, e tudo bem.

 

O que realmente importa é o que fazemos com o tempo que temos. Com quem fazemos planos, com quem passamos tempo juntos, que histórias criamos e para quem contamos depois. Há anos afirmo isso, a vida não é muito mais que histórias para contar. Vivir para contarlo.

 

Temos que marcar um churrasco.

Até.   

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