domingo, março 21, 2010

A Sopa 09/32

(Um texto de cinco anos atrás, publicado em 23/03/2005, enquanto inicio novas atividades profissionais e reorganizo a vida.)

E não é que voltou a nevar?

(cheguei em casa, fiz o chimarrão e fiquei olhando a neve cair, ouvindo Jayme Caetano Braun)

De onde me vem, Cordeona, o formigueiro
Que sinto n'alma, ao te escutar floreando?
E essa vontade de morrer peleando.
Será que um dia eu já não fui gaiteiro???

De onde me vem esse tropel no pulso,
E esse calor de fogo que incendeia?
Por que será que fico assim, convulso,
E só de ouvir-te o sangue corcoveia???

É o atavismo, eu sei, Cordeona amiga,
Sem que tu digas, sem que ninguém diga,
Parceira guasca que nos apaixonas.

E se mil vidas Deus me desse, um dia,
Uma por uma delas, eu daria,
Prá ter mil funerais de mil Cordeonas!!

Vinte e três de março de 1985.

Sábado. Acordei com a voz da minha mãe acordando o meu pai no quarto ao lado e pedindo para que ele descesse e fosse até o quarto onde minha avó dormia naqueles dias, pois algo parecia não estar bem. Lembro de não ter dormido após isso, acompanhando o movimento que se seguiu, sobe e desce das escadas, telefonema para o médico dela, vozes, e a certeza de que algo não estava bem.

Minha vó, mãe da minha mãe, era a última dos meus avós viva. Quando nasci, meus avós paternos já haviam morrido, e meu avô materno – médico – morrera seis anos antes, em 1979, quando eu tinha sete anos, de infarto agudo do miocárdio, no aeroporto de Lisboa, justamente quando chegava à Europa para uma viagem de férias com minha avó.
Desde que me lembro da minha avó, ela já tinha câncer. De mama. Havia operado, mastectomia bilateral, e feito radio e quimioterapia. Lembro de quando ela perdeu o cabelo pela quimioterapia. Usava uma peruca e brincava com fato, principalmente impressionando meus primos menores. Sempre bem humorada é como lembro dela, e existem muitas histórias que costumamos volta e meia relembrar. Eu era o seu primeiro neto.

Aquele março de 1985 ela foi ficar lá em casa, se não me engano ao sair de uma internação no Hospital da PUCRS, o mesmo em que, anos depois, fiz a faculdade, residência médica e fui médico contratado. Tinha ido ficar lá em casa e, por estar com dificuldades de subir as escadas, montamos o quarto dela na parte térrea da casa. Na copa, onde fazíamos as refeições, junto à escada, colocamos a cadeira de balanço onde ela ficava (e que está no mesmo lugar até hoje). Foi sentada ali, uns dias antes de morrer, que a vi dizendo que achava que “desta vez…” fazendo sinal com a mão fechada e apontando o polegar para baixo, indicando que achava a coisa não ia terminar bem.

De certa forma, terminou. Morreu dormindo, sem dor, sem maiores sofrimentos. Exceto o nosso, que sempre achamos que essas coisas acontecem cedo demais.
Naquele sábado, fui levado para a aula de vela que tinha. Velejei sozinho, ouvindo o vento e o barulho da água, e pensei na finitude humana e no sentido da vida. Tinha doze anos.

Vinte e três de março de 1995.

Quinta-feira. Médico-residente de primeiro ano de clínica médica no Hospital São Lucas da PUCRS. Passando de estágio pelo UTI. Depois de dois meses e vinte dias de residência, assinei meu primeiro atestado de óbito. Ao voltar para casa, sozinho, pensei na finitude humana e no sentido da vida. Tinha vinte e dois anos.

Vinte e três de março de 1996.

Sábado. Santa Cruz do Sul/RS. Casamento do Caio e da Aline. Eu e a Jacque fomos padrinhos. Festa muito legal. Após uns uísques a mais convidei todos para o nosso casamento, que seria em seis meses (e não era efeito do álcool). Ao voltar ao hotel, após a festa, pensei nas voltas que o mundo dá e no sentido da vida. Tinha vinte e três anos.

Vinte e três de março de 2005.

Quarta-feira. Toronto, Canadá. Estou morando aqui sozinho há sete meses, e devo ficar mais um ano e meio. Em nove dias, vou ao Brasil para passar quinze dias com a família e os amigos. Terminei o doutorado em dezembro, e estou aqui num pós-doutorado. Sentado em frente à janela, vejo a neve cair. Em silêncio, penso nas voltas que o mundo dá e no sentido da vida.

Tenho trinta e dois anos.

Até.

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