domingo, abril 04, 2021

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia, Ano Dois, Vigésimo Dia)


Um estádio de futebol.

 

Há quase dez anos abandonado, o Estádio Olímpico, estádio do Grêmio Porto-Alegrense durante muitos anos até a transferência do time para a Arena OAS, no bairro Humaitá, é parte da memória afetiva da cidade. E minha também, mesmo sendo eu colorado.

 


A primeira lembrança que tenho do estádio, de estar no estádio, é de vinte e quatro de julho de 1985, à noite, para assistir à semifinal do campeonato brasileiro daquele ano entre Brasil de Pelotas e Bangu, torcendo para o time gaúcho, claro. Não lembro como e nem com que fui assistir a esse jogo, mas não importa mais.

 

A lembrança pessoal seguinte, é de dezembro de 1987, naquele que foi o primeiro show em estádio em Porto Alegre: fui assistir ao show do Sting (sessenta mil pessoas junto) no gramado, com chuva antes de começar e ao final do mesmo ficar sem saber como voltar e encontrar um amigo do meu pai (e pai de uma amiga minha) que me deu carona para casa. Parece que a abertura foi com o Capital Inicial, segundo pesquisei. Não lembro se realmente foi, mas não importa mais.

 

Passaram-se alguns anos, estamos no final dos anos noventa, e voltei ao estádio do rival futebolístico para um jogo de futebol. Um GRENAL, numa noite de meio de semana. Fui sozinho, de carro. Estacionei na lomba do cemitério (o estádio fica/ficava ao lado de uma colina onde estão boa parte dos cemitérios de Porto Alegre, os mortos assistindo os jogos do time de azul do bairro Azenha) e entrei no estádio do adversário, assisti ao jogo na torcida do Inter, absolutamente sem nenhum conhecido, e voltei para casa sem problemas, algo quase impensável nos dias de hoje em que policiais escoltam os torcedores e os estádios são quase de torcida única (abstraindo o fato de que agora – em meio à pandemia – não há torcida nos estádios.

 

Entramos no século vinte e um.

 

Formei-me médico, me casei, morei fora do país e voltei a morar em Porto Alegre. Nunca mais entrei no velho estádio do rival, o que não quer dizer que não tenho mais história com ele.

 

Maio de 2007.

 

Por aqueles dias, o Grêmio participava de uma Libertadores da América, torneio de futebol que consagra o melhor time da América do Sul. Durante as fases decisivas do campeonato, os chamados mata-mata, os times jogam dois jogos entre si, um em cada cidade, para decidir quem passa de fase. Havia jogo do Grêmio na cidade nesse dia em questão, quartas-de-final do campeonato.

 

Coincidiu de no dia do jogo vir a falecer a avó paterna da Jacque, a Nona, como era conhecida, e o velório iniciar no final da tarde para o enterro ocorrer às 21h. E tudo isso ocorrer no cemitério que fica ao lado e acima do estádio, onde ocorreria no mesmo momento o jogo. O que significa que, na capela onde velávamos o corpo da Nona, nos sentíamos dentro do estádio, tamanho era o volume dos gritos e dos cantos.

 

Muito estranho.

 

Mais estranho (e bizarro, por que não?) foi na hora em que o padre estava fazendo as orações tradicionais desse momento. Justamente em meio ao silêncio que era só quebrado pela oração recitada (a porta da capela havia sido fechada), justamente nessa hora, houve o primeiro gol do Grêmio. Foi como se estivéssemos dentro do campo. Gritaria na rua, foguetes. Todos continuamos em silêncio ouvindo o padre, no frio de uma noite em Porto Alegre.

 

Passam-se alguns anos e o Grêmio troca de estádio, abandonando o velho Olímpico, deixando-o entregue aos mendigos, drogados e aos ratos. Enquanto não resolvem pendências financeiras e administrativos, ele vai lentamente se desintegrando em meio ao lixo e escombros e memórias, sob o olhar eterno dos mortos na colina dos cemitérios.

 

Não havia mais pensado nele até ontem, quando infelizmente subi a colina dos cemitérios mais uma vez.


Os tempos de pandemia levam a velórios curtos, com pouca gente, o que pode ser menos doloroso para aqueles que se despedem de um ente querido, imagino eu. Foi assim com o tio e padrinho da Jacque, o tio Vittorio, figura querida e sempre bem humorada que não resistiu, com seus setenta e nove anos recém completos, à COVID-19. Antes de poder tomar a vacina, adoeceu. Internou, foi para a UTI, e não resistiu, infelizmente.

 

Ontem à tarde, foi o velório e a cremação.

 

Durante o velório, saí por um instante da capela. Vi uma porta que dava para um terraço e entrei. Ali, ao sol, vi o velho Olímpico do show do Sting, de um tempo em que a vida recém iniciava, semidestruído.

 

A vida segue, inexorável. 

 

Até. 
 

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