domingo, março 07, 2021

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Trezentos e Cinquenta e Sete Dias) 


Ironia.

 

Comecei a Sopa da semana que termina, publicada na segunda (01/03), afirmando que eu estava fisicamente muito bem, apesar do estresse mental desses dias de pandemia. Pois é.

 

Parece que não era bem assim.

 

Descobri isso nessa mesma madrugada. Acordei por volta de 1h30 da manhã de terça-feira, olhei a hora no celular, e decidi ir ao banheiro. Ato contínuo, lembro da Jacque chamando meu nome, eu perguntando o que havia acontecido e prontamente dizendo que eu estava bem, logo antes de perceber o sangue que escorria de trás da minha cabeça.

 

Ajudaram-me – a Jacque e a Marina – a levantar do chão e me sentar em um banco. Estava me sentindo bem, mas o corte no couro cabeludo necessitava de pontos. Nos vestimos, chamamos um Uber, e iniciamos a peregrinação que passou pelo Cruz Azul (fechado àquela hora), Hospital São Lucas da PUCRS (negaram atendimento dizendo que não havia cirurgião de plantão, uma inverdade, eu sabia, mas não quis criar caso, mesmo tendo me identificado como médico do corpo clínico) e que terminou no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, onde foi feita a sutura do corte e fui submetido a uma tomografia de crânio que foi normal.

 

Voltei para casa perto das 5h da manhã.

 

Às 8h30, já estava no consultório para o dia de atendimentos, em sua maior parte casos de COVID. Passei o dia bem, apesar do curativo e a cabeça enfaixada. Contei a história mil vezes, para todos que encontrava e perguntavam o que havia acontecido.

 

Quarta de manhã acordei com vertigem. 

 

Ao abrir os olhos, todo o quarto girava, principalmente quando eu fazia movimentos do pescoço para os lados, para cima ou para baixo. Sem outros sintomas. Por coincidência, não precisei ir ao hospital, então fiquei em casa durante todo o dia, com pequena saída para o supermercado. A quinta-feira foi dia de consultório superlotado novamente, consultas presenciais e online, pacientes extras, como tem sido os últimos meses.

 

Sexta-feira, ao acordar, vertigem novamente.

 

Fui com a Jacque para o hospital, pois tinha alguns assuntos a resolver. Chegando lá, não vi no estacionamento o carro do Valentim, neurocirurgião que me atendeu há trinta anos atrás quando do meu acidente, e que hoje é meu amigo e médico do meu pai (e eu sou médico do Valentim, para completar o círculo). Mandei um WhatsApp para ele para saber se ele estava pelo consultório. Não estava, mas ligou prontamente.

 

Expliquei a ele o que tinha acontecido no início da semana e o que eu ainda sentia. Perguntou por que não havia feito contato com ele antes, mas eu disse que me sentia bem. Disse que eu tinha que fazer uma ressonância de crânio (e cervical), orientou medicação e que eu fizesse o quanto antes e o avisasse, que se preciso ele ia me ver na hora. Respondi que não precisava, me sentia bem. Saí do meu consultório direto para o setor de diagnóstico de imagem, onde expliquei a situação e prontamente, de urgência, fiz o exame. 

 

A duração do mesmo foi de cerca de quarenta minutos, em que fiquei deitado, de olhos fechados, com aquele ruído característico da ressonância. Tempo suficiente para pensar em muitas possibilidades, entre elas a pior, evidentemente. Eu tinha um câncer de sistema nervoso central.

 

Àquela altura, provavelmente não teria mais cura e eu teria pouco tempo de vida. Estranhamente, uma calma baixou sobre mim. Se fosse isso, tudo bem, eu estava preparado. Tudo se resolveria bem.

 

Ao final do exame, ainda com o avental do hospital, fui encaminhado para falar com o radiologista. Tudo certo comigo, tirando umas cicatrizes do meu acidente de mil novecentos e noventa. Não havia chegado a minha hora. Ainda.

 

Ao terminar de me vestir e verificar o celular, havia mensagens do consultório do cardiologista dizendo que já estava me esperando para uma avaliação.  Atendido, constatada uma arritmia cardíaca e a possibilidade de uma alteração estrutural no coração. Foi, então, solicitada uma ecografia do coração, que fiz no final da tarde de sexta e mostrou (dos males o menor) apenas a dita arritmia.

 

Ordem médica, estou em repouso.

 

Sem atividade física intensa, foram vetados meus treinos de bike nas ruas. O final de semana de sol aumentou a frustração, mas não há nada que eu possa fazer a não ser esperar e fazer os exames de avaliação. Em pouco tempo estarei liberado novamente, não estou preocupado. A frustração a que me refiro é que eu completaria, dois dias depois do episódio que desencadeou tudo isso, cento e cinquenta dias consecutivos de prática de atividade física, entre musculação, pedal e caminhadas. 

 

Justamente no meu melhor momento em termos físicos, de como me sentia, ocorre esse contratempo. 

 

Paciência.


Seguimos.

 

Até.

 

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