O Bonde (um texto de quando morei em Toronto)
Gosto de andar de bonde.
Aqui eles chamam de ‘street car’, para diferenciar dos ônibus. Quando vou para um dos hospitais, tenho a opção de pegar o metrô, descer duas estações depois e pegar o bonde que vai me largar na frente do Toronto Western. Quando os dias estão bonitos – e tivemos vários assim na semana que passou – gosto de ir olhando a paisagem. As lojas, as casas estreitas de dois andares, passando pelo bairro português, o café Bota Fogo, a casa de carnes Nosso Talho, e por aí vai.
Vinha eu, absorto em pensamentos paralelos e ouvindo música gauchesca no meu discman, olhando para fora, quando presenciei uma cena diferente.
Pela calçada, ia um daquelas máquinas de limpar a rua, que é um misto de aspirador de pó gigante com um carrinho de golfe, com o funcionário dirigindo-a e dando direção à grande “tromba” que sai do alto do carrinho e que aspira as folhas. Ao olhar, notei que a calçada estava vazia, sem pessoas, exceto por uma transeunte de traços orientais que corria à frente da máquina, atrasada por certo. Mas parecia que ela estava fugindo da máquina, que agora me parecia um monstro perseguindo-a.
“Enquanto isso, em Tóquio…” foi a primeira coisa que me veio à cabeça. De repente eu estava em um filme japonês e um monstro perseguia uma indefesa vítima. Olho para os outros passageiros: impassíveis, como se nada estivesse acontecendo. Viro e miro o céu, aguardando o surgimento do, sei lá, Ultraman. Nada. Já imagino o seguimento do drama: a menina correndo, cai no chão, o monstro chega e com sua grande tromba a pega pelo pé, ela grita de horror e dor, alguém tenta ajudá-la, mas é em vão. Só resta, na calçada, sangue e o iPod que ela vinha escutando.
Nisso, chega o ponto em que devo descer. Por um instante, esqueço da tragédia que se desenrolava na rua. Desço e me dirijo até a esquina, onde vou atravessar a rua para chegar ao hospital. Aguardando abrir o sinal para os pedestres, de repente viro para o lado, e a máquina, o monstro, está chegando em mim. Por um instante, cogito levantar os braços e sair correndo e gritando por socorro.
O sinal abre. Atravesso a rua.
Começa mais um dia de trabalho.
Até.
(publicado em 18/11/2004)
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