domingo, maio 03, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Quadragésimo Nono Dia)


O normal.

O conceito de normal, de normalidade, é um conceito estatístico: aquilo que é mais comum, mais frequente. Não tem nenhuma relação com os conceitos de certo ou errado. Não é um conceito moral.

Ser normal é ser comum, seguir a norma, a regra, ser o que a maioria é. Loucura, por outro lado, é o fugir da normalidade, o diferente. É – e lembro das aulas de Medicina Social – quem foge do padrão normal, do estatisticamente mais comum. O ‘louco’ é aquele que não segue os padrões normais. E nem sempre não ser normal é ruim.

É o que dia a música do Raul Seixas, ‘Maluco Beleza’: 

Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real

Além disso, existem muitos comportamentos, por exemplo, que antes eram considerados normais, por comuns, e por isso mesmo socialmente aceitos que hoje não fazem sentido nenhum, de absurdos que eram e são, e ainda assim ocorrem, mesmo não sendo mais normais e inclusive sendo considerados criminosos. Como homofobia, e racismo.

Por isso que quando se fala em voltar ao normal após a pandemia do coronavírus, temos que nos perguntar qual normal queremos, e falo no sentido mais individual, mais íntimo. A vida sempre muda, fato inexorável, e estará diferente após nossa libertação do confinamento. Como será?

Não sei.

Imagino, contudo, que certos comportamentos não vão mudar, porque definem o que somos. A proximidade entre as pessoas, não no sentido estritamente físico, mas as relações, não devem mudar. Somos seres sociais. Precisamos de outras pessoas para a vida fazer sentido. Isso vai continuar. Devemos repensar nossas prioridades, em termos gerais. Tenho pensado muito nisso, no que realmente é importante para mim. Outros hábitos e comportamentos, por outro lado, se forem deixados de lado não farão falta.

Mas falava de normalidade.

Os últimos dias foram de alguns lampejos da antiga normalidade de antes do vírus que parou o mundo. Quinta-feira passada, atendi no consultório pela manhã, equipamento de proteção completo, máscara, face shield, álcool gel em abundância, mas ficou uma paciente que só poderia ser atendida no início da tarde, então fiquei no consultório para almoçar por lá. O restaurante em que almoço às segundas, terças, quintas e sextas-feiras, e que tem a mesa do nosso grupo reservada, está fechado devido à pandemia. Como não havia reservado comida no café do hospital, almocei um sanduíche na Associação dos Médicos. E foi lá esse momento de quase normalidade. Diversos colegas passaram por lá, e pudemos conversar amenidades (além – claro – de Covid-19) e descontrair um pouco.

O feriado, sexta-feira, começou com quarenta quilômetros de bicicleta, sozinho, de bandana como máscara, por Porto Alegre. No final do dia, recebemos a visita da Karina e da Roberta, que vieram nos trazer álcool 70 que haviam comprado para nós e ficaram para jantar. Sapatos na porta de casa, mantendo distanciamento mínimo. Conversamos bastante, jantamos, vimos fotos antigas de viagens. Pouco se falou de vírus e suas consequências. Foi como se nunca tivéssemos ficado esses quarenta e poucos dias sem nos encontrarmos.

Foi leve.

Todos precisamos de leveza.

Ah, tudo vai passar, e espero que logo.

Até.

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