domingo, agosto 12, 2007

A Sopa 07/04

Um texto antigo, para refletirmos.

Há alguns anos atrás, lá pelos idos de 1991, descobri entre os livros lá em casa, um chamado ‘O Deserto dos Tártaros’, de uma série da Editora Nova Fronteira chamada ‘Clássicos da Literatura Universal’. Essa é uma das vantagens de ter uma mãe professora de português: o acesso à boa literatura. Pois é, encontrei o livro, de um autor italiano chamado Dino Buzzati. Li e gostei.

Há uma passagem, contudo, que me marcou em especial, tanto que fiz questão de anotá-la para poder reler um dia. Fala sobre a vida e a morte:

“Não há nada mais repulsivo que o medo da morte. A vida é o único bem que só tem valor quando lhe damos pouca importância e quando não a apreciamos. É ignóbil não saber abandoná-la com facilidade para a realização de grandes fins. Apenas pode servir-se dela aquele que é capaz de menosprezá-la com facilidade e serenidade. Quem a ama em demasia já está moralmente morto, já que a sua suprema força vital, aquela que permite o sacrifício da própria vida, apodrece enquanto a cultivamos. No entanto, como é impenetrável a vontade que nos domina! Essa coisa misteriosa que nos é dada não sabemos por quem, que nos arrasta não sabemos para onde, que é nossa propriedade e não sabemos se dela podemos dispor, propriedade que não vale nada quando lhe atribuímos um valor, um coisa parecida com uma contradição superficial e profunda, vazia e plena, digna e indigna, de muitos sentidos e sem nenhum sentido - por que uma lei da natureza nos obriga a amá-la? Devemos tremer diante de um aniquilamento que, no entanto, talvez seja menos duro de suportar do que geralmente é a existência de um homem que, enquanto se lamenta do triste dom da vida, deve conservá-la com comida e bebida e cuidar para que não se apague a chama que nem o ilumina nem o aquece.”

Literariamente muito bem escrito, mas levei anos para entender exatamente aquilo que esse trecho quer dizer de verdade. Até que, um tempo atrás, pude ver claramente muitas coisas. Estava eu em casa, à noite, olhando alguns dos álbuns com fotos de viagens que a Jacque e eu fizemos quando senti que já podia contar ao mundo que eu estou pronto para morrer.

Isso, já posso morrer em paz comigo mesmo.

Não, não estou dizendo que vou morrer num curto espaço de tempo. Nem que vou morrer. Estou dizendo que, se porventura eu morresse amanhã, minha vida não teria sido em vão. Uma sensação diferente daquele que tive aos dezoito anos, logo após o meu acidente, quando aí, sim, achei que a minha vida teria passado em branco caso eu tivesse morrido. Foram treze anos que se passaram desde então, e fiz o que eu acho que tinha de fazer na vida. Isso tem a ver com religião, já explico.

As religiões, todas, surgiram por uma única razão: devido à angústia humana com relação à morte. Todas as crenças são baseadas nisso: para onde vamos e o que precisamos fazer chegar neste lugar quando morrermos. O reino dos céus, inferno, purgatório, todos são lugares para onde podemos ir após a morte, dependendo de nossa conduta nesta vida, que - por sinal - é a única que temos certeza que existe. Muitas pessoas moldam suas condutas pelo medo da morte e por isso - como diz a passagem do livro - já estão moralmente mortas. O medo de morrer nos mata.

Essa não é uma idéia mórbida, ao contrário. A revelação, de que se eu morresse agora morreria em paz, tem o sentido inverso do que podem estar pensando alguns leitores mais precipitados. Se já fiz tudo o que eu achava que tinha de fazer, agora mesmo é que vou fazer muito mais, porque é por prazer. A partir de hoje, sinto que estou na vida por opção, não por obrigação. As coisas que pretendo conquistar daqui para frente são porque eu realmente quero, não porque eu devo prestar contas para alguém. Isso tem repercussão em todos os campos da vida, mas já não preciso provar nada para ninguém.

O que não quer dizer que as coisas vão mudar, que vou me importar menos com as pessoas que gosto ou vou desfazer de laços afetivos. De novo, pelo contrário. Talvez externamente nada mude, num primeiro momento. É aquilo que chamam de espírito, alma, ou reações químicas e neurotransmissores que nos fazem acreditar, sonhar, pensar. Isso mudou. Mas pode ser que eu vire alpinista, quem pode saber?

Houve algum episódio que me fez ver isso? Não, nenhum. Foi daqueles momentos em que estamos em silêncio, absortos em pensamentos vagos, e vem à idéia ou nos damos conta de algo óbvio, que sempre esteve bem ali, ao alcance da mão e que pode mudar a nossa vida.

Não existem carecas na Jamaica.

Até.

Nenhum comentário: