domingo, agosto 01, 2004

A Sopa 04/02

Esta semana é só ficção, para não ficar falando sobre o meu umbigo...

Um

Bacharel em ciências jurídicas. Advogado. Não, melhor dizer bacharel em ciências jurídicas. Foi isto que me tornei. Depois de tudo o que imaginei para a minha - para as nossas - vida(s), ao menos consegui me formar em Direito. Quando digo isso, sempre lembro daquelas camisetas que dizem algo sobre "fazer direito" com o óbvio duplo sentido. Como eu ia dizendo, foi tudo o que consegui entre tudo aquilo que imaginamos para nossas vidas, que nunca foram nossas, mas sim a tua e a minha vida. Nunca fomos uma dupla, um par, nunca compartilhamos dos mesmos medos nem das mesmas expectativas. Sempre foste mais forte, mais "sabedora das coisas". Desde que lembro de ti, já sabias para onde ir e por que ir; às vezes tinhas algumas desesperanças, mas isso não mudava os teus planos. Eu, por outro lado, não sabia nem quem eu era direito, muito menos para onde queria ir. Por isso te admirava, por isso te amei.
Vinha lembrando disso enquanto estava parado num engarrafamento de final de tarde uns dias atrás. Não, não chovia nem tocava nenhuma música no rádio do carro. Afinal, quem precisa de música ou de chuva para sentir saudades? As lembranças sempre vêm quando a gente não espera, nos assaltam de repente e ficam dias rondando nossos pensamentos até voltarem ao limbo das memórias mais antigas onde ficarão até serem despertadas novamente, quem sabe por um sonho. Esta noite sonhei contigo, Carla. E com o Edu também. Vocês que foram embora há tanto tempo, que não lembramos mais por que nos separamos, tu, o Edu, o Caco, o Morte e eu. Agora deve parecer tudo sem importância, mas quem vai nos devolver o tempo perdido? Que rumos tomamos que - paralelos - não mais podemos nos reunir? No sonho estávamos reunidos, sem rancores, como nunca poderemos estar novamente. Lembro do teu sorriso. Como eu amava aquele sorriso, mesmo que algumas vezes ele fosse sarcástico a ponto de machucar sem piedade.
Estes pensamentos duraram até eu abrir a porta de casa e ser abraçado calorosamente pelo Gui. Acho que tu não sabias, mas já sou pai. Verdade. Um guri, Guilherme. Quem diria, você deve estar pensando. Eu mesmo me faço esta pergunta de vez em quando. O que é o mundo, afinal?

Dois

Não faz muito tempo, voltamos para ver o vale, para descobrir se as mesmas pedras ainda estavam nos mesmos lugares, se a luz do sol ainda nos ofuscava os olhos quando acordávamos pela manhã, se ainda podíamos andar de pés descalços no chão de terra e asfalto que levava à água. Uma gaivota indicaria a proximidade com o mar, e a areia trazida pelo vento que varre tudo confirmaria esta impressão. Talvez encontrasse um ou outro que também estivesse querendo revivê-lo.
Não havia mais o vale, nem pedras, nem a luz de antes, nem pés descalços. Havia o mar. E o vento.

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Sentado à beira da cama, ainda com o roupa que sempre usava para dormir, ele olhava através da janela, de onde via o mar. Parecia não pensar em nada, absorto em olhar o movimento dos carros que iam através da avenida que levava à praia. Ao fundo, o mar azul nem sempre azul, sem ninguém notar, avançava há décadas em direção ao continente.

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De volta à primavera e à cidade, pensava em ir ao parque – o mesmo de antes – andar sem compromisso, ver pessoas e, quem sabe, encontrar alguém. Sempre pensava em encontrar conhecidos nos lugares por onde andava, mas raramente acontecia. Talvez fosse uma coisa antiquada, não importava, ele era uma pessoa que sentia saudades. De épocas, de pessoas. O hábito de escrever em seu velho caderno de notas sobre a vida havia se perdido, e o único contato que tinha com o seu passado era através de uma música ou outra que eventualmente ouvia no rádio. Sempre se perguntava: “Afinal de contas, o que é o tempo, e o que é o mundo?”.

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Antes de ir embora, ainda tive coragem de tirar os sapatos para tentar recuperar a sensação de liberdade que lembrava e/ou imaginava de outros tempos, quando corria com eles descalços pela planície que levava ao vale, que não existe mais. Não entendi, melhor, não quis entender por que agora doíam e sangravam. As pedras soltas pelo asfalto pareciam mais cortantes que outrora, e a distância até o mar parecia bem maior do que em minhas lembranças. Frustrado, resolvi voltar para casa.
Onde ficava a minha casa, afinal?

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Sem muita vontade, resolveu vestir-se e sair de casa. Mais um dia começava sem novidades nem perspectivas. Antes de sair, parou alguns instantes para olhar o porta-retratos que ficava no armário da televisão, ritual que cumpria todas as vezes que ia deixar o lugar que um dia ele imaginara um lar. Talvez um dia ela voltasse.

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As melhores manhãs eram as de sábado, com sol. Talvez não tivessem nada de especial, talvez fosse referência a uma música qualquer que ouvira ou simplesmente a tentativa de dar um toque poético um dia da semana, não importava. Gostava de sair de casa e caminhar, quase sempre cantando para si mesmo, sem rumo certo ou tempo previsto. Andar pelo prazer de andar. Não era adepto de esportes, qualquer que fosse o tipo, mas freqüentemente se via em meio aos atletas de fins-de-semana caminhando por parques ou na beira da praia. Misturava-se a eles e, se não fosse pelas roupas inadequadas para o jogging, seria confundido com um deles. Não se importava, não fazia nenhuma diferença para ele.

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