domingo, junho 14, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Nonagésimo Primeiro Dia)

Eu tenho usado tênis.

Durante muito tempo da minha vida, mesmo após formado médico e durante a residência médica, eu quase nunca usava sapatos. O meu dia-a-dia era usando tênis e calça jeans. 

Informal, como o meu jeito de ser.

Nunca fui uma pessoa formal, e meu modo de vestir refletia essa característica. Podemos dizer que estava em harmonia com quem eu era. Mas não era (é) exatamente o que se espera de um médico, diziam. Um médico deveria ser formal, aparentar sobriedade, o que se refletiria em sensação de segurança para os pacientes e colegas. Vestir-se para impor respeito.

Naquela época, mais de vinte anos atrás, havia uma querida funcionária do laboratório de função pulmonar do Hospital da PUCRS que dizia, assim que eu comecei a namorar a Jacque, que ela era responsável por eu melhorar em termos de vestuário, porque até ali eu me vestia “como um sem terra”... Ríamos disso, e rimos até hoje ao lembrar.

Não foi só a Jacque que foi responsável pela “melhora” de como eu me vestia, a necessidade de “parecer médico” foi outra razão, e usar sapatos ao invés de tênis foi apenas uma das mudanças. Tinha períodos em que me vestia de forma mais formal, e eventualmente até gravata usava. Durava um tempo, e depois voltava a um guarda-roupa menos formal. Sempre de sapatos, contudo.

Tênis, não mais.

Nem durante o fellow em Toronto, o traje mais formal durou muito tempo. Excetuando-se eventos realmente formais, normalmente era camisa e sapatos (mais ou menos sociais, variava um pouco). Não deixei de ser quem eu era, e o modo de vestir continuava refletindo o meu jeito de ser.

Eventos sociais formais pedem trajes formais, e continuo respeitando essa regra. Como durante os quatro anos como Presidente da Sociedade de Pneumologia do RS, nos Congressos e eventos. Durante o período em que trabalhei na indústria farmacêutica, por outro lado, logo antes de começarmos uma transmissão ao vivo de uma discussão sobre um congresso internacional que havíamos participado, recebi um recado no ouvido de que “calça jeans, nunca mais...”. Entendi e respeitei a orientação, porque tinha que me adaptar às regras do local em que trabalhava, e nunca tive problemas com isso.    

Após, no ano passado, ter sido encerrada minha relação trabalhista com a indústria (como já falei antes, um movimento que planejava fazer, apenas não no momento em que ocorreu, que acabou sendo muito bom, mas não importa mais) eu decidi permanecer por um tempo como profissional liberal, num período “sabático”, em que ficaria apenas atendendo o consultório, sem outras atividades. Sem chefe, sem regulamentos e normas a seguir.

O que não mudou a forma como eu me vestia. 

Mantive o meu “estilo” (para o bem e para o mal...).

Até que veio o coronavírus.

Quase não consigo mais ouvir ou falar desse assunto, como imagino que esteja sendo assim com todos vocês, estimados leitores. Não assisto noticiários na televisão, não entro em lives (exceto as de trabalho), não “dou corda" para alarmistas. Sigo cuidados como evitar aglomerações em locais fechados, manter distanciamento social, lavagem de mãos, uso de máscara em ambientes fechados (e por gentileza na rua).

Reconheço o privilégio que tenho por ter um teto, alimentação e uma reserva financeira que serve para nos manter por aqui mesmo sem emprego fixo e com o movimento de pacientes no consultório tendo diminuído mais de 80% mesmo nunca tendo deixado de estar disponível para atender. Mas, apesar de tudo, existem alguns pontos positivos em meio à pandemia. Ficar mais tempo em casa, depois de um período em que viajava toda semana, por exemplo, é muito bom. Estamos em casa levando bem, e fico tranquilo em saber que nossos pais, mães (da Jacque e meus) e demais familiares também estão física e emocionalmente segurando as pontas.

Mas – acima de tudo – tenho usado tênis.

Inicialmente, nos primeiros dias de isolamento, em que ia no consultório para atender um ou dois pacientes, e quando ainda não sabíamos muito bem o que estava acontecendo em termos de riscos de contaminação, decidi ir trabalhar de tênis, tênis esses que não entrariam mais dentro de casa (ficariam na área de serviço, onde seriam higienizados e tal). Fui usando, e acabei gostando. De novo.

E, lembrando de quando parei de usar tênis porque não “era adequado para um médico”, me dei conta da bobagem que era ou é isso. Não sei bem. Talvez naquela época fosse importante, mas hoje não é mais. É aquele papo de que “não preciso mais provar nada a ninguém”.

Se vou continuar usando apenas tênis?

Certamente não. Vou usar o que eu quiser.

Não é importante.

Até.

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