Garrison Brewing Co
Hallifax, Nova Scotia/Canada - October/2019
Bom sábado a todos.
Até.
Crônicas e depoimentos sobre a vida em geral. Antes o exílio; depois, a espera. Agora, o encantamento. A vida, afinal de contas, não é muito mais do que estórias para contar.
(Crônicas de uma Pandemia, Ano Dois, Sexagésimo Nono Dia)
Sobre música, e o Rio de Janeiro.
Há uns poucos meses, uma tendência se tornou uma realidade aqui em casa: temos assistido cada vez menos televisão. E não falo apenas da tevê aberta, que já abandonamos há bem mais tempo. A tevê por assinatura, com sua dezena de canais, também perdeu a graça, pelo visto.
Temos assistido séries em streaming, e vídeos diversos no You Tube, quando sentamos juntos para assistir algo. Mais recentemente, vídeos de música, dos mais variados. Listas de músicas mais tocadas entre os anos 1950 e 2020, musicais, vídeos de músicos de rua, tudo tem sido visto.
Corta para o final de semana, quando falava com meu irmão e minha sobrinha Olívia, que moram em NY. Entre a conversa, ela quis cantar (também toca piano, mas não vem ao caso). E cantou ‘Águas de Março’, do Tom Jobim. E sabia a letra de cabeça, toda. Fiquei impressionado e feliz. E me fez assistir a vídeos do Tom Jobim, da Elis Regina, do Luiz Melodia entre outros. Mas, acima do todos, do Tom Jobim.
Fiquei feliz também por lembrar de uma coletânea de músicas do Tom Jobim, que tínhamos em CD quando eu ainda morava com meus pais (há mais de vinte e cinco anos), e me fez lembrar da minha relação com o Rio de Janeiro. Vem de longo tempo.
A primeira vez que estive no Rio foi com sete anos de idade, final dos anos setenta, em viagem com meus pais e meu irmão. Saímos de carro de Porto Alegre, e fomos parando em algumas praias no caminho até lá, onde ficamos em Copacabana. Lembro de visitarmos o Cristo, o Pão de Açúcar, entre outros pontos turísticos. Ficamos poucos dias, mas foi bem legal. Depois dessa, fiquei muito tempo sem ir ao Rio de Janeiro.
Quando calhou de ir novamente, fui para um congresso médico, quando eu iria fazer minha prova de especialista em Pneumologia, e tive de ficar por uma semana inteira no Congresso para fazer a prova no final deste, e fiquei num hotel meia boca no Arpoador. E, claro, choveu quase todos os dias...
Lembro de fazer de ônibus o trajeto entre o Arpoador e o Hotel Glória, onde ocorria o congresso, e atentar para os nomes das ruas, e associar a letras de músicas, de todas as músicas que referenciavam o Rio de Janeiro que eu conhecia. Era circular por lá lembrando de músicas, de diferentes estilos e autores.
Anos depois, trabalhei em uma empresa situada no Rio de Janeiro, mais especificamente em Jacarepaguá. A maior parte do tempo o trabalho era viajando ou em home office (antes mesmo da pandemia). Mas, evidentemente, tive que ir diversas vezes à cidade. Só que não era – para mim, para mim – exatamente ir ao Rio de Janeiro como eu sempre pensei o Rio de Janeiro: a zonal sul (Copacabana, Ipanema, etc.). Não, chegava no Galeão, pegava um Uber que ia pela Linha Amarela, e ia direto trabalhar. E me hospedava ali perto mesmo ou na Barra. Poucas vezes passei pela zona sul, o que sempre me tirou a sensação de estar no Rio de Janeiro (minha visão de turista, de alguém não local).
A última vez que fui para lá, em dezembro de 2018, para checkup médico (estava gordo e estressado...) e uma reunião, fiquei três dias em um hotel em frente ao mar, na Barra. Minha despedida foi um caipirinha no terraço do hotel, olhando o mar...
Mas fugi do assunto.
Falava de música, do Tom Jobim, e do Rio de Janeiro.
Nunca vou esquecer da primeira vez que cheguei (e saí de lá) de avião, à noite, o processo de aproximação da cidade iluminada e com tempo claro, e me pegar cantando o ‘Samba do Avião’. Era uma conexão para um voo para os Estados Unidos, e era a minha primeira viagem de avião. A cidade cada vez mais próxima, e a música sem sair da minha cabeça...
Minha alma canta,
Vejo o Rio de Janeiro,
Estou morrendo de saudade.
Rio, teu mar, praias sem fim,
Rio, você foi feito pra mim.
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara.
Este samba é só porque, Rio, eu gosto de você,
A morena vai sambar, Seu corpo todo balançar.
Rio de sol, de céu, de mar,
Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão
Este samba é só porque,
Rio, eu gosto de você,
A morena vai sambar,
Seu corpo todo balançar.
Aperte o cinto, vamos chegar,
Água brilhando, olha a pista chegando,
E vamos nós.
Aterrar
Um tempo em que ainda viajávamos...
Em breve, em breve.
Até.
(Crônicas de uma Pandemia, Ano Dois, Sexagésimo Terceiro Dia)
Foi um bom final de semana.
Por isso essa Sopa, que usualmente é dominical, está saindo quentinha (como o clima manda) apenas hoje, segunda-feira. Porque foi um fim de semana de noites com jeito de inverno e pudemos ficar em casa, e aproveitar juntos, a Marina, a Jacque e eu.
A semana começara desafiadora.
Em pleno início de noite de segunda-feira, enquanto eu aguardava na fila do caixa no supermercado, logo atrás de uma aluna minha que passava suas compras do dia, imagino, e que no final da compra incluiu uma pacote de maços de cigarro, sem olhar para trás onde eu estava, talvez por vergonha, talvez porque eu não tenha nada a ver com o que ela faz ou não fora do ambiente acadêmico, no que tem total razão, enquanto eu aguardava a minha vez, tranquilo, ensimesmado pensando na vida, fui interrompido por um discurso forte que não ouvi bem até a senhora que estava atrás de mim, do alto dos seus aproximados mais de setenta ou menos, afirmou peremptoriamente:
“Eu não vou me vacinar”.
Discretamente, olhei em sua direção.
Usava a máscara com o nariz para fora, e concordava com o cidadão da fila ao lado, que discursava sobre a pandemia e dizia que se ficasse doente ficaria em casa, porque no hospital “vão te matar”, e que o presidente tinha razão. Pensei por um instante em responder a ela, ou a ele, dizer que estavam errados, mas de que ia adiantar?
Há situações na vida em que simplesmente não vale à pena se incomodar, e – nessas horas – o silencia é a melhor opção. Se depois de um ano as pessoas ainda pensam assim, bom, não vai ser um estranho numa fila do supermercado que vai convencê-las do contrário.
Uma semana depois, hoje pela manhã, atendi uma paciente antiga, que trabalha numa instituição que atende pessoas em risco social, na linha de frente, assistente social, que veio me pedir um atestado para fazer a vacina. Não tinha nenhuma situação médica que justificasse a sua inclusão no grupo prioritário, por mais que eu tenha certeza de que ela deveria ser vacinada o quanto antes. Por outro lado, não poderia eu atestar uma condição inexistente. Ela disse que entendia a situação, mas foi triste vê-la com os olhos cheios de lágrimas.
Mas eu falava do final de semana.
Foi quieto, calmo.
Sábado à noite cozinhei, a sopa que minha avó fazia, e cuja receita minha mãe me ensinou. Preparei enquanto ouvíamos música e conversávamos na cozinha. Depois, ficamos assistindo vídeos de música no You Tube, a Marina a Jacque e eu. Domingo, em casa novamente. Como se lá fora o mundo estivesse em silêncio, e nada pudesse nos perturbar.
Por mais domingos assim, mas sem pandemia.
Até.
(Crônicas de uma Pandemia, Ano Dois, Quinquagésimo Quinto Dia)
Uma Sopa de muitos anos atrás, atualizada.
O aniversário do meu pai (80 anos hoje!), em nove de maio, volta e meia cai junto com o ‘Dias das Mães’, como foi há vinte e um anos atrás.
Corria o ano de 1999, início do segundo mandato do FHC, poucos meses após a desvalorização do real perante o dólar – que foi de cerca de R$ 1,20 para algo em torno de R$ 2,00 (!) – justamente “momentos” antes da primeira viagem dos Perdidos na Espace para a Europa. A mudança cambial aconteceu justamente quando nos preparávamos para viajar, o que gerou estresse e discussões intermináveis a respeito de alternativas.
O dólar acabou baixando para patamares mais adequados para a época, e foi num dia 09 de maio, aniversário do meu pai e Dia das Mães, que embarcamos de Porto Alegre rumo à Guarulhos e depois à Bruxelas, nossa porta de entrada no velho mundo. Foi a minha primeira viagem à Europa.
Até ali, a minha experiência internacional – iniciada nas minhas primeiras férias como médico-residente, em maio de 1995 – resumia-se a uma ida aos Estados Unidos (Flórida, parques da Disney, Nova York, Filadélfia, Atlantic City e Washington) e duas idas à Buenos Aires, sendo que a primeira como lua-de-mel.
Como já contei diversas vezes, fomos em grupo: a Jacque e eu, a Karina e o Paulo (cunhados) mais a Roberta (minha afilhada, de dois anos e meio) e o Caio e a Aline (grandes amigos). Alugamos uma van, a Renault Espace (daí o nome, Perdidos na Espace) e quase cinco mil quilômetros em aproximadamente vinte e poucos dias, por Bélgica, Holanda, Alemanha, Suiça e França.
Pois é, vinte e um anos passaram, e penso o quanto o mundo mudou neste tempo (e que agora estamos há mais de ano em plena pandemia, sem nem poder planejar viagens enquanto seguimos lutando por nossa sobrevivência...). O quanto nossas vidas mudaram, que caminhos tomamos, por onde andamos hoje.
Não houve reunião do grupo para marcar a data (por óbvias razões), como em outras vezes, mas também porque já não somos um grupo e qualquer reunião que se fizesse estaria incompleta. Porque alguns seguimos rumos diferentes que nos afastaram, afinal a vida faz dessas.
Paciência...
Penso em quem eu era há vinte e um anos. Olho para trás. Olho os caminhos que percorri e fico tranquilo. Tem sido bom. A vida tem sido boa. Ainda não cheguei até onde quero ir (será?), até porque vou descobrindo por onde devo ir enquanto ando. Falta muito para chegar?
Não importa. O que importa – mesmo – é o caminho.
E quem anda contigo.
Até.
(Crônicas de uma Pandemia, Ano Dois, Quadragésimo Oitavo Dia)
O isolamento.
O isolamento social, situação mais intensa – digamos assim – que o distanciamento, tem as mais variadas consequências em todos nós, queiramos ou não. E, como tudo na vida, existe o lado ruim e o lado bom.
Citei primeiro o ruim porque é o que primeiro nos vem à mente quando pensamos no último ano e quase dois meses de pandemia. Afastados de nossos familiares, amigos, sem as mesmas possibilidades de socialização de antes, sofremos porque somos seres sociais. Precisamos do convívio com outras pessoas, da troca de experiências, da conversa, do afeto. Se nós, adultos, já sentimos a ausência dos relacionamentos sociais, são as crianças as maiores prejudicadas com tudo isso.
A nossa formação como seres humanos não prescinde de socialização. Crescemos (intelectual e emocionalmente) no contato, na convivência. Por isso, também, que sou favorável ao retorno das aulas presenciais.
Mas não é essa discussão que quero fazer.
Quero falar de um ponto positivo desse período de pouco convívio social. Entre todas as dificuldades que enfrentamos, todas as privações decorrentes da pandemia, em meio a tudo isso, esse período pode servir também para uma reafirmação de nossa individualidade. O último ano nos privou dos grupos sociais e, com isso, também nos afastou de algumas ditas “pressões sociais”, que muitas vezes – mesmo que inconscientemente – são impostas a nós pelos grupos de convivência.
Os grupos servem, durante boa parte de nossas vidas, se não durante toda ela, como locais de reconhecimento, de pertencimento, onde nos vemos espelhados em outras pessoas e cujas normas – mesmo que não verbais – estabelecem padrões a serem seguidos para a aceitação por ele. Códigos de condutas. É assim e sempre foi assim. Para ser aceito no grupo, segue-se um padrão.
Isso é mais forte nos momentos de formação de nossa personalidade e identidade, início da vida social, e é muito forte na adolescência, por exemplo. São as turmas, ou tribos. Todos vestidos iguais, os – na minha época de escola – surfistas, os intelectuais, os darks, etc. O All Star preto que usávamos. Fazer parte de um todo para expressar individualidade.
Isso persiste durante a vida, com cobranças mais ou menos explícitas (“jeans aqui não!”). É normal, sempre foi assim.
E aí vem a pandemia.
Somos obrigados a ficar em casa (ou, no meu caso, de casa para o consultório) durante todo o ano, isolados e trabalhando em home office, não podendo encontrar as pessoas e, dessa forma, ficamos também longe das imposições de grupos sociais. Sob certo aspecto, ficamos(fiquei) mais independentes. Longe das pressões sociais, podemos ser mais nós mesmos.
Mais selvagens, menos robôs.
É um ponto de vista.
Até.