A Viagem.
Meu carro, minhas regras.
A música é fundamental na vida das pessoas, quer elas saibam ou não. Não vivemos sem música. É ela que nas variadas situações dá cor e textura ao que vivemos.
Como viajar é estar vivo de maneira completa, porque quando viajamos podermos ser quem somos, sem as ‘amarras’ dos papéis sociais que nos tolhem (e, é claro, que mantém a civilização, mas isso é outra conversa) e podemos dar vazão a quem realmente somos. Por isso viajar é potencialmente perigoso, pois podemos descobrir características nossas que não conhecíamos e até que talvez não gostemos. Nunca se volta de uma viagem igual a o quê éramos antes. E, em viagens, a música toma uma dimensão / importância ainda maior. Evidentemente que falo agora de viagens em grupo e de carro.
A escolha do repertório musical pode acabar com a harmonia do grupo. Ou não.
Lembro que, em 1999, na véspera da viagem, ao nos dar conta que as informações do carro diziam que a Espace teria um toca-fitas, e passei umas boas horas gravando fitas para levar, para - na chegada – descobrir que na verdade o carro tinha um CD-player...
Sempre a escolha da trilha sonora da viagem teve importância, e existem músicas que sempre me fazem lembrar de determinadas viagens e lugares. Nei Lisboa, e o ‘Cena Beatnik’ sempre me lembram da A3, uma das rodovias que ligam Paris ao aeroporto Charles de Gaulle (CDG), por termos a ouvido justamente neste trecho em uma de nossas viagens para a França. Na verdade, lembro de uma viagem em especial quando penso em música e viagens.
Essa a que me refiro, que intitulamos ‘Alpes e Lagos’, ocorreu em 2002, num tempo anterior às máquinas fotográficas digitais e muito anterior aos celulares com boas máquinas fotográficas, entre janeiro e fevereiro, uma viagem longa, de vinte e quatro dias, e que fizemos – em sua maior parte – a Jacque e eu. Digo em sua maior parte porque o início dela, em Paris, foi na companhia do meu irmão, que àquela época estava morando nos Estados Unidos (ainda não definitivamente) e, antes de voltar ao Brasil, foi passar uns dias na Europa.
Paris
Nos reencontramos em Paris após cerca de um ano distantes, ele em NY e eu Porto Alegre. Ele ia ficar em um albergue, mas acabou ficando conosco no bom e velho Hotel Minerve, na Rue des Ecoles, no Quartier Latin. Ficamos alguns dias em Paris, nós três, e quando a Jacque e eu íamos seguir em direção ao sul da França, ele iria para Londres ou Bruxelas, não lembro. Só que o convidamos para mudar os planos e fazer um trecho com a gente.
Ele balançou, ficou em dúvida.
Muita dúvida.
Tanta dúvida que, no dia de ir embora, fizemos o check out no hotel, e ele sem saber o que fazer, sem decidir. Para dar tempo a ele de pensar, de ir uma agência de viagens para reorganizar o roteiro, deixamos as malas no hotel e a Jacque e eu fomos buscar o carro. Àquela época, a melhor opção para circular de carro pela Europa era com a Renault. Fazíamos um leasing de 20 dias (mais ou menos) e no final devolvíamos o carro. Só que a retirada do carro era o aeroporto CDG. De RER, o trem, fomos do centro de Paris até o aeroporto (Terminal 2, se não me engano), pegamos o carro e voltamos para encontrá-lo – com o Nei Lisboa de trilha sonora - pegar nossas malas e descobrir a decisão dele.
Sem GPS ou Waze, apenas com o mapa da Europa da Michelin, uma tradição da época pré-internet móvel... Era sempre um desafio dirigir lá, mas muito divertido porque a parceria era boa...
Chegamos de volta, e ele ainda não havia decidido.
Após mais um pouco, acabou optando por seguir seu plano original. Nos despedimos, e só fomos nos ver novamente dois meses depois quando ele voltou ao Brasil e apareceu de surpresa no meu aniversário, o que foi bem legal.
Saímos de Paris ouvindo Zeca Baleiro, ‘Líricas’, que ouvimos muitas vezes durante a viagem. Na saída, erramos uma entrada e acabamos mudando o roteiro, visitando Provins, Sens, e terminando o dia em Bourg-em-Bresse. No outro dia, fomos à Lyon e terminamos o dia começando a subir os Alpes, em Aix-les-Bains.
Alpes e Lagos
Neve na Áustria
Nós e o Renault Laguna, antes de devolvê-lo
A viagem seguiu para a Itália, aonde chegamos após atravessar o Túnel de Frèjus, e fomos recebidos pelo espetáculo da neve caindo. Fizemos um passeio rápido pelo Piemonte e Val D’Aosta (ficando em Torino e Aosta) e depois voltamos à França pelo Passo de Gran San Bernardo. Ali perto, em solo francês, Chamonix e Annecy. E seguimos subindo e descendo os Alpes e costeando lagos, passando pela Suiça (indo até Zurique), Alemanha (o Bodensee e Lindau), Áustria (carnaval em Innsbruck, e visitando Salzburg, Hallstat e indo até Viena) e retornando para Itália (Cortina d’Ampezzo, Madonna di Campiglio, Riva del Garda, Sirmione, Lecco, nas margens do Lago di Como, e terminando a viagem em Milão).
Foram vários dias de viagem, longos quilômetros rodados e tudo sempre com trilha sonora que, como eu disse, até hoje associo determinadas canções com determinados lugares. Por isso a importância da boa escolha do que se vai ouvir na viagem.
Voltando à 2022.
Antes de viajarmos, a Marina e eu selecionamos algumas músicas e preparamos uma playlist no Spotify específica para a nossa viagem. Além disso, como era o meu celular que ficaria conectado central de mídia do carro (por causa do Waze), eu tinha TODAS as minhas playlists à disposição, inclusive uma chamada ‘Apatifação’, de onde saiu a música que virou quase o hino da viagem, que conto e breve.
Como eu disse no início, meu carro, minhas regras. Então eu determinaria quais músicas ouviríamos durante a viagem. Autoritário? Certamente, mas a vida não é justa. Confesso que eles foram tolerantes comigo, e que até houve um ou outro raro momento de tensão na hora de definir a música, mas minha intransigência foi diminuindo à medida que a viagem foi acontecendo, da mesma forma que fui ficando – como posso dizer? - mais em paz com a vida.
Saímos de Porto Alegre rumo à São Lourenço ouvindo Ultraje a Rigor, ‘Nós Vamos Invadir sua Praia’, porque era isso que pretendíamos fazer no dia seguinte, se tudo corresse bem.
Até.