domingo, dezembro 29, 2024

A Sopa

Nós teríamos morrido.

 

Estávamos no último ano da faculdade de medicina, ainda no milênio passado, meses antes da formatura, em um tempo sem internet e de telefones celulares pesados como tijolos e que eram cobradas até as ligações recebidas, e decidimos uma última aventura antes de nos tornamos médicos efetivamente. Faríamos a travessia entre Rio Grande, no sul do estado, até Pinhal já no litoral norte do Rio Gande do Sul, onde o Luciano tinha casa e serviria de ponto de chegada.

 

De bicicleta. Pela beira da praia. No inverno.

 

Em um trajeto de cerca de trezentos quilômetros pela praia, em uma região há trinta anos ainda mais desabitada, entre o Parque Nacional da Lagoa do Peixe e o mar, com o tradicional vento nordeste soprando forte, quatro de nós pretendíamos fazer esse trajeto em alguns dias. Sem um conhecimento prévio preciso da região, em uma época em que os aparelhos com GPS eram equipamentos para profissionais, sem celulares via satélite em locais que até hoje não tem um bom sinal de celular, tínhamos a ambição de fazer essa jornada. Por diversão, porque seria uma aventura memorável.

 

Não tínhamos uma noção do tipo de solo que encontraríamos, se areia fofa ou um terreno mais denso, se teríamos que pedalar mais próximos ao mar ou não, e nem qual o tipo de pneu que deveríamos ter em nossas bicicletas. Apenas tínhamos a vontade juvenil de ir.

 

Não éramos campistas, alpinistas, ou mesmo atletas de qualquer esporte. Eu, vejam só, estava treinando com uma bicicleta emprestada! Os outros eu não sei como estavam se preparando, mas faríamos a travessia, era o nosso plano.

 

Seríamos – nós e as bicicletas – levados até a cidade de Rio Grande, de onde faríamos de balsa o trajeto até São José do Norte, de onde partiríamos pedalando em direção ao litoral norte do Rio Grande do Sul.  Se decidíssemos fazer o trajeto pela Rodovia do Inferno, a BR101 nesse trecho, seria menos complicado que o nosso plano inicial, de seguir pela beira da praia, pela areia, contra a vento provavelmente. Mas mantivemos o plano original. Éramos decididos.

 

naives, ingênuos. Inconsequentes.  

 

O curioso é que ninguém dizia nada em contrário, ninguém tentava nos dissuadir dos nossos planos. Menos a mãe do Luciano, que não deixou ele ir. Mas iríamos, ainda assim, até o fim. Quem nos levaria até Rio Grande seria o pai do Petterson. 

 

Acontece que tínhamos uma janela de oportunidade pequena, em nossas férias da faculdade, para a aventura. Contávamos com a sorte de ter tempo bom para isso, do contrário seria bem desagradável. Tínhamos cálculo de comida para levar, assim como água, eu até tomei uma Benzetacil preventiva (não pergunte) para caso de algum problema.

 

Tudo certo.

 

Mas, por uma circunstância alheia à nossa vontade, não pudemos ir. 

 

O avô do Petterson ficou doente e o pai dele não poderia nos levar. Perdemos a oportunidade. Depois, a correria e as atribuições da vida adulta, como médicos e depois pais de família, não permitiu que fizéssemos. Esses dias, no nosso encontro de 30 anos de formados, conversando sobre isso, relembrando, e levando em conta que o Petterson esteve na região visitando (de carro) e verificou in loco o terreno, chegamos à conclusão de que era uma insensatez o que queríamos fazer sem o preparo e estrutura adequados. 

 

Certamente teríamos morrido, ou passado pelo vexame de ter que ser resgatados pela marinha ou outra instituição. Nos vimos voltando, derrotados, com frio, fome e sono, e seríamos notícias nos jornais, afinal na época não existiam redes sociais...

 

Melhor seria morrer mesmo...

 

Até. 

Um comentário:

PETTERSON disse...

Nossa, e pensar que quase fomos. Com minimo preparo. O plano era levar muito leite longa vida, que serviria de hidratação e alimento. E uma comida bem calórica, como criba de porco. Faltava bom senso. Hoje, seria possível, as condições melhoraram e adquirimos (uma certa dose de) bom senso. Ainda temos uma janela de uns 5-9 anos. Depois disso, o bom senso ficará grande demais.