sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A vitória da Democracia*

O resultado das eleições parlamentares palestinas demonstra que o desejo de soberania do país é majoritário na população. Portanto, ao resto do mundo não cabe julgar e nem condenar a escolha feita de maneira clara e livre. Tem-se apenas de respeitá-la e fazer todo o possível para viabilizar, sem preconceitos nem falsos conceitos, a legalização do Hamas, pois esta parece ser a última esperança do povo de um acordo justo e definitivo. A participação do Hamas, a organização exemplar, o clima de alegria em que o processo de votação ocorreu e a disciplina registrada na apuração dos votos, provam uma grande maturidade de militantes e eleitores, que responderam massiva e calmamente ao apelo das urnas.

Apesar disso e devido às práticas violentas do Hamas, aqui e ali se ouvem vozes alteradas, imagens agressivas veiculadas pela televisão e fisionomias estrangeiras perturbadas, temerosas de uma ‘islamização’ da Palestina. Como se os muçulmanos fossem majoritariamente obtusos e bárbaros. O que não são. No exílio, a Europa e os Estados Unidos estão cheios de intelectuais, cientistas, acadêmicos e criadores talentosos e tolerantes. Na Cisjordânia e em Gaza também.

Espera-se que, quando as armas do Hamas forem postas a serviço de um exército nacional e que os jovens tiverem liberdade e acesso ao estudo e ao trabalho, as palavras destes quadros bem preparados sejam ouvidas fora da Palestina e inspirem a reconciliação do povo de temperamento hospitaleiro, estudioso e aberto. No clima de tensão dos últimos anos era quase impossível que uma alternativa laica prevalecesse.

Um Fatah forte e com poder decisório teria sido o ideal, mas este não era o caso. Seu poder era fictício e a imagem de corrupção havia sabotado a credibilidade do partido e causado fissuras profundas. De tanto pressionar e humilhar os dirigentes do Fatah (quem não se lembra dos meses de reclusão ostensiva de Yasser Arafat em Ramallah?), os inimigos do Hamas acabaram contribuindo para legitimá-lo. Portanto, em vez de reclamar e lamentar o resultado das eleições o melhor é celebrar com os palestinos a vitória que obtiveram.

Quarenta e nove anos após a divisão das terras para a criação do Estado de Israel, pode-se afirmar que a Palestina é hoje um Estado de Fato e Democrático. A escolha do Hamas foi emitida por voto majoritário, e é irreversível e incontestável por qualquer que seja a força. Interna ou externa à Cisjordânia e a Gaza.

É claro que a juventude armada e desvairada é perigosa. Porém, estes mesmos jovens que em Gaza buscaram refúgio e esperança nas armas, após a partida dos colonos judeus, haviam dito ao Fatah que estavam aptos e prontos a integrar-se em uma polícia ou um exército regular, já que este era seu trabalho. Cabe agora ao Hamas a responsabilidade de encontrar-lhes emprego e à comunidade internacional autorizar a soberania política e militar do país.

O Movimento Islâmico de Resistência, cujo acrônimo Hamas significa entusiasmo, já é inevitável há anos, apesar de os ocidentais teimarem em ignorar sua influência. No exterior eles só eram conhecidos por suas ações militares, mas localmente, representavam um papel essencial junto à população carente dos territórios ocupados, sobretudo em Gaza.

Quando foi formado nos anos 70, suas atividades se resumiam a obras caritativas e culturais e sua participação política foi inclusive incentivada por Israel, para enfraquecer o Fatah. Com o passar dos anos e a impotência política, suas retaliações aos ataques israelenses foram se endurecendo, seu braço armado foi se estruturando, e sua influência foi aumentando até tornar-se o que é, após a última Intifada do início deste milênio, provocada pela presença de Ariel Sharon e sua escolta na Esplanada da Mesquita de Jerusalém.

Quando em 2001 Ariel Sharon foi eleito Primeiro Ministro de Israel, os progressistas do planeta tremeram, como tremem hoje os conservadores. O momento era de negociação e em vez de eleger um partido de conciliação, os israelenses optaram pelo extremismo do Likud. Temia-se o pior desse homem de guerra sanguinário, partidário da ‘Grande Israel’ e um dos principais responsáveis pelas colônias judias – o maior empecilho à paz pois inviabiliza a soberania do Estado Palestino. Mas como a terra gira e a história é forçosamente evolutiva, os apelidos de ‘carniceiro’, ‘bulldozer’, foram arrefecendo e após o orquestrado espetáculo da evacuação de Gaza (enquanto outras colônias continuam sendo construídas silenciosamente na Cisjordânia), hoje há quem chame Sharon de homem de paz.

Mudam os tempos, mudam as vontades, já dizia Camões. Prova disto, em 1948, Albert Einstein e outros intelectuais da época, enviaram uma carta ao New York Times condenando o recém criado em Israel Partido da Liberdade, por sua ‘organização, métodos, filosofia política e social assemelhar-se às dos partidos Nazista e Fascista’. Este grupo armado cometeu inúmeros atos de teor terrorista, horrendos massacres, mas acabou se adaptando à conjuntura local, se transformando, e em 1978, o seu ex-líder, Menachem Begin, foi perdoado e o passado enterrado no Prêmio Nobel da Paz.

O mesmo aconteceu com Yasser Arafat, que a geração de hoje viu como um homem sofrido e impotente em face da força bélica e política de seus adversários. A minha geração o conheceu como o líder combativo da OLP, movimento pelo reconhecimento da Palestina considerado terrorista durante anos – até ser reconhecido, seus membros se diluírem no Fatah e Arafat ser eleito chefe de um governo local precário, mas legal, que lutava pela liberdade e a autonomia de seu país.

Quem diria que o Fatah viria a ser o partido moderado laico defendido pelos ocidentais? Pode ser que a segurança que Mahmoud Abbas transmite às potências ocidentais seja justamente a fraqueza que tirou sua credibilidade e o fez perder as eleições.

O contexto agora é outro e as caras mudaram.

A mais conhecida é a de Ismail Hanyieh, nascido em um campo de refugiados no norte de Gaza e formado em Literatura na Universidade criada pelo Hamas, ao qual aderiu nos anos 80. Após a primeira Intifada, ele foi, junto com quatrocentos palestinos, expulso de seu país pelo então primeiro ministro de Israel, Yitzhak Rabin, para uma no man’s land (terra de ninguém) na fronteira com o Líbano. Um ato controvertido de Rabin, que jogou os refugiados nos braços da milícia xiita do Hezbollah, que os iniciou nos atentados suicidas.

Ismail Hanyieh retornou a Gaza em 1993, onde assumiu a chefia do Hamas quando o líder fundador e chefe espiritual do movimento, Ahmed Yassine, foi assassinado em 2004. Hanyieh é tido como um homem pragmático, capaz de adaptar-se a qualquer circunstância. Razão pela qual concordou em participar das eleições. A incógnita reside na data em que retirará do programa do Hamas a recusa de aceitação do Estado de Israel, um gesto de reciprocidade primordial.

A eminência parda do Hamas é Khaled Meschaal, de volta à Palestina e teoricamente o número um, apesar de seu exílio na Síria ter impedido que assumisse a sucessão política de Yassine. Ele é de Ramallah, formado em Física no Kuwait e militante do Hamas na Cisjordânia desde 1990. Estava exilado na Síria após ter escapado de várias tentativas de assassinato – a última, por envenenamento na Jordânia pelo Mossad (serviço secreto israelense), o que obrigou Israel a desculpar-se publicamente e a libertar Ahmed Yassine. Khaled Meschaal tem sido o negociador internacional do Hamas.

Tanto um quanto o outro foram criados na Palestina entrecortada por colônias judias, com a economia jugulada e sua população privada de perspectiva de futuro. Tanto um quanto o outro sabem que o futuro está na paz. Mas, nem um nem outro parece disposto a baixar a cabeça erguida a duras penas sofridas e infligidas.

Como em qualquer democracia, é lógico que nem todos na Palestina estejam satisfeitos com a vitória do candidato de oposição. No exterior também se pode estar insatisfeito, como com a reeleição de Georges W. Bush. Contudo, quando não se conhece a região apenas como turista ocidental, com guias israelenses, de ônibus e boné, como os jornalistas estrangeiros durante a evacuação de Gaza, consegue-se entender o porquê deste resultado indesejado e procura-se enxergar os palestinos, globalmente, como os seres humanos e sofridos que são.

Como os Estados Unidos em relação ao mundo, os direitos de Israel em relação à Palestina não têm limites. Em nome de uma segurança unilateral, tudo lhe é permitido: invadir impunemente os limites de uma fronteira imposta pela ONU, construir um muro além da Linha Verde (fronteira internacional), oprimir o povo que se encontra além deste, privá-lo de aeroporto, do direito de ir e vir e até de existir.

De certa maneira, este conflito entre Israel e Palestina lembra-me o período negro da Ditadura no Brasil. De um lado, a legalidade (in)constitucional com todos os direitos: de seqüestrar, matar e aterrorizar. Do outro, os ‘subversivos’ e seu terrorismo amador doloroso e desajeitado.

A nossa história tupiniquim terminou bem. Há quem diga que foi porque não levamos nada a sério. Outros, porque somos um país católico, em que o afeto e o perdão são inerentes à nossa condição humana. Ou então, que nosso horror a conflito faz com que vejamos que discussões sobre culpas e razões são estéreis, intermináveis e só servem para alimentar rancores.

Como dizia Ghandhi, ‘Olho por olho leva o mundo todo à cegueira’.

Eis então uma idéia para a diplomacia brasileira: favor aconselhar a uns e outros israelenses e palestinos, em Brasília e na ONU, que ponham fim ao ódio fratricida, à paranóia, à vitimização sem fim e que negociem uma anistia total e irrestrita!

Além do respeito dos tratados das Nações Unidas, é claro, pois a justiça é a condição sine qua non para a paz. Teriam sido ganhadas várias décadas e evitadas centenas de mortes se a fronteira entre Israel e a Palestina tivesse vigorado desde o início e se em Israel não se tivesse cultivado a amnésia.

Ainda é tempo de corrigir o erro, de retirar todos os colonos judeus da Palestina, retirar a Tsahal, derrubar o muro que ultrapassa a fronteira, respeitá-la e deixar os palestinos se emanciparem.

Em vez de crucificar o Hamas, é melhor que o Ocidente se questione do porquê de um Movimento de vocação cartitativa ter se transformado em carniceiro, e estender-lhe a mão antes que os fundamentalistas orientais o façam.

* Por Mariângela Berquó, especialista em geopolítica.
Correio Caros Amigos, 237º edição, 1º de fevereiro de 2006.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mariângela. Ando procurando o seu e-mail. Li por acaso aquela literatura que você anda publicando. Discordo com a sua ingenuidade politica. Mais gostaria de ter noticia.

Abs.

JY