terça-feira, janeiro 03, 2012

Um anúncio e uma carta antiga

Hoje solicitei minha exoneração da Prefeitura de Porto Alegre.

Decisão tomada, posso dizer, não sem sofrimento. Com coerência, contudo.

Quero que fique claro que acho justo que seja cobrado que se cumpra a carga horária de todos os funcionários públicos, mas acho que deveria haver remuneração condizente, o que não ocorre. Como não consigo - teria que abrir mão de outras atividades importantes - cumprir o que está no meu contrato, a única opção honesta - no meu caso, atenção para o negrito - é sair. Fico chateado, mas paciência.

Com relação esse assunto, mantenho a mesma opinião que tinha muito tempo antes de sequer fazer concurso para ser médico do município. Encontrei, nos meus arquivos, carta aberta ao então Prefeito de Porto Alegre, que enviei a um jornal local em 2003, nunca publicada. Diz mais ou menos o seguinte (editei algumas partes por citar nomes e fatos já datados):


23 de Março de 2003.

Excelentíssimo Prefeito de Porto Alegre,


Tomo a liberdade de escrever-lhe esta carta para fazer uma reflexão, motivado pelos últimos acontecimentos envolvendo a questão da saúde na nossa amada cidade, principalmente aqueles relacionados ao tratamento dispensado pelo seu governo aos médicos.


Esclareço desde já que sim, sou médico, e não, não sou funcionário do município. Esta condição provavelmente não me dá o distanciamento crítico necessário para analisar os dois lados da questão com total imparcialidade, mas permite que eu possa lhe alertar e tentar esclarecer algumas coisas que não vêm sendo ditas para o grande público como deveriam ou com o destaque que mereceriam.
Todos dizem que a saúde vai mal em Porto Alegre, assim como no resto do Brasil, e disso não se pode discordar. Mas está mal por quê? Por que os médicos não querem cumprir o seu horário de trabalho? Ou por que faltam recursos para investir em saneamento básico, educação (saúde também é questão de educação) e na própria saúde, remunerando melhor hospitais, disponibilizando especialistas,  exames e, sim, remunerando melhor os médicos? Apesar de parecer, não é uma questão tão simples assim.


Não vou entrar no mérito da equiparação salarial entre os médicos, que – quando da municipalização da saúde – foram colocados trabalhando juntos, cumprindo o mesmo número de horas e com as mesmas funções, profissionais recebendo remunerações diferentes por terem sido admitidos pelo estado, união ou pelo município. Isso nem é preciso de argumentos maiores do que aquele que diz que, para trabalho igual, igual remuneração. Ponto. Também não vou entrar na questão das condições de trabalho, segurança, etc, que em alguns locais é exemplar, mas em outros deixa muito a desejar. 
 

Pergunto, contudo, qual o custo de se ser médico? Essa é uma pergunta que normalmente não é feita, mas é interessante pensar no quanto se investe na formação e manutenção de um médico. Custos em espécie, que podem ser medidos em moeda corrente, e custos outros, talvez mais importantes e mais difíceis de serem medidos e avaliado seu retorno. Quanto custa, pergunto, uma juventude, interrompida na sua metade pela precoce perda da ilusão da imortalidade?


Todo o jovem, conscientemente ou não, traz consigo a ilusão da imortalidade, da onipotência. A morte é uma idéia muito distante, assunto para muito, muito mais tarde. Essa é, junto com a associação  entre álcool e direção, uma das causas de morte por acidentes de trânsito, que ceifam as vidas de parte de nossa juventude. O jovem estudante de medicina (que é jovem, e que também morre como muitos outros, no trânsito) conhece a morte de perto desde cedo, na faculdade de medicina. Mais grave, conhece a morte com sofrimento, o que é um pouco pior. Começa por aí a perda da juventude, e vai além, com inúmeros finais de semana estudando para provas, plantões, etc. E continua depois de formado, com as muitas noites e finais de semana de plantão, longe da família, os vários empregos algumas vezes até em cidades diferentes.


O custo de manutenção de um médico é alto, porque do médico é cobrado que ele se mantenha sempre atualizado, estando ciente dos principais avanços e novidades da sua área, que participe de congressos, de estudos. Que se dedique aos seus pacientes como se cada um fosse o único, que esteja sempre disponível e de bom humor, mesmo que ele ligue para o seu médico às quatro horas da manhã com alguma dúvida. Que compartilhe de suas angústias, que os ouça e sofra junto. E, na grande maioria das vezes, encontra médicos assim. Mas tudo isso tem um custo. E alto, em termos gerais, não só financeiros. Entre tantas razões, essas acima são algumas para justificar porque o trabalho médico não é um trabalho burocrático, que deva ser cumprido em horário comercial, das oito ao meio-dia e das duas às seis da tarde, de segunda à sexta-feira. O médico não pode bater cartão,  sair do hospital ou do posto, ir para casa e esquecer totalmente do trabalho, do sofrimento das pessoas que passam por ele.


Além disso, nem todo o trabalho médico é igual. Existem diferentes tipos de atendimento: o consultório, o posto de saúde, o pronto-atendimento (que pode ser num posto de saúde), o plantão de emergência. Não se pode tratar tudo como se fosse a mesma coisa. O plantão de emergência e de pronto-atendimento, locais onde as pessoas vão porque sentem algo agudamente e necessitam ser vistas por um médico, necessitam de um  pronto atendimento, neste locais não pode faltar e nunca faltam médicos. No consultório do médico, último reduto do tempo em que o médico era um profissional liberal ou autônomo, o horário é ele quem determina, a partir de suas condições de tempo para atender, pois ainda é seu próprio patrão.


Quanto aos postos de saúde, com especialistas, onde as consultas são previamente agendadas, o funcionamento pode e deve ser diferente. Por exemplo, um especialista que tem doze consultas agendadas e atende todas em tempo menor do que as horas que deveria cumprir (quatro, por exemplo), por que este médico tem que ficar, sem fazer nada, no posto, esperando para completar suas horas? É no mínimo ilógico querer obrigá-lo a isso. Por que não atende mais? Porque, por determinação da lei, o médico pode e deve atender no máximo quatro pacientes por hora, para um bom atendimento. 


Em pronto-atendimento e emergência, atendemos bem mais pacientes que isso, sem dúvida, sempre para o bem do bom fluxo do sistema. Sem fôssemos seguir esta orientação, quanto tempo de demora levaria o atendimento? É para pensar.


Não digo que os médicos sejam ingênuas vítimas do sistema e que são explorados, mas também não podemos culpá-los pelo caos instalado. Existem maus profissionais, aqueles mal-intencionados e outras distorções de caráter, assim como existem maus empresários, advogados e até maus políticos. De todos, se espera correção e honestidade. Todos, sem exceção, podem fazer grande mal a um grande número de pessoas. Excluindo-se os políticos, todos têm que passar por um longo período de formação específica até exercerem suas atividades.

(...)



Numa guerra, como sabemos Vossa Excelência e eu, a primeira vítima é sempre a verdade. É o que parecer estar acontecendo no caso dos problemas com a saúde pública. Por isso, e na mais honesta e boa das intenções, devo lhe fazer um alerta: não é a política mais adequada a de demonizar os médicos para encobrir uma série de outros problemas relacionados à saúde. 


Obrigado por sua atenção,

Marcelo Tadday Rodrigues

Até.

Um comentário:

Jud disse...

Oi Marcelo,
Nossa, realmente os problemas seguem os mesmos de 2003 e comparo com a minha atividade de professora.
Somos culpados pelo péssimo desempenho dos alunos, pela evasão escolar, pelo índice de reprovação,parece que o professor é o vilão de tudo.
Quando será que saúde e educação terão atenção dos governantes???
Abraço,
Judite Martins http://jud-artes.blogspot.com