Em meio à pandemia, uma lembrança de trinta anos atrás.
No ano de 1990, o dia 12 de agosto caiu num domingo, dia dos pais.
E não foi um bom dia para o meu pai, e nem para mim.
Digo isso porque ele não tem lembranças agradáveis daquele domingo, quando foi acordado por volta das seis horas da manhã com o telefone tocando e a notícia de que seu filho mais velho – eu, então com dezoito anos – estava internado no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre vítima de um acidente automobilístico.
Foi, aliás, um péssimo dia aquele 12 de agosto de 1990.
Tudo começara na noite anterior, quando eu havia ido a uma festa. Um colega de faculdade que tinha carro à disposição me dera carona para a tal festa, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Ao mesmo tempo, parte da turma da praia estaria nesta mesma festa, e havíamos combinado de sairmos juntos. Chegando ao local, por alguma razão que o tempo tornou um mistério, decidimos – todos – ir a um bar não muito longe dali.
Lá chegando, por algum ruído de comunicação, acabamos – o colega que havia me dado carona, uma colega (minha ex-namorada) e eu – ficando em mesas separadas. Os dois em uma mesa e eu com minha turma da praia em outra. Achei estranho eles dois não sentarem conosco, mas em meio à festa, deixei para lá. Acho que algumas vezes fiz sinal para que eles dois se juntassem a nós, mas preferiram ficar onde estavam. Isso durou toda a noite, até a hora de ir embora.
Como eu estava de carona com este colega, certamente iria voltar para casa com ele, também a colega e ex-namorada, além de dois dos meus amigos da turma da praia, conforme previamente combinado. Quando fomos sair, notei que o colega dono do carro havia bebido um pouco além do recomendado, e me ofereci para ir dirigindo, proposta recusada por ele. Parênteses. Em tempos anteriores à lei seca, confesso que também havia bebido, mas bem menos que ele, pois eu nunca fui de beber muito, com exceção de alguns carnavais na praia, mas isso é história para outro dia. Fecha parênteses. Nosso roteiro de volta para a zona sul (e deixando os outros caronas em casa) iniciava pela zona norte da cidade, onde morava a nossa colega (e minha ex-namorada). Eu seria o último a ser deixado em casa.
Logo na primeira parte, notamos que o motorista estava, podemos dizer com segurança, com sua percepção alterada pelo álcool. Quando paramos para largar a primeira passageira, decidi que eu iria dirigir de qualquer jeito. Ele desceu do carro para acompanhá-la até em casa e eu assumi o volante. Ele havia levado a chave e disse que ele é quem dirigiria.
Então eu resolvi que iria de ônibus.
Detalhe: 5h15 da madrugada, tendo que atravessar a cidade de ônibus (que nem haviam começado a circular ainda) ou a pé. Saí caminhando pela rua em direção a um ponto de ônibus.
Ele veio atrás de carro e se comprometeu a dirigir com cuidado. Aceitei a proposta e seguimos. Largamos o segundo e fomos até a frente da casa do último antes de seguir para a zona sul. Quando o penúltimo (eu seria o último) desembarcou, deu a dica: colocar o cinto de segurança (naquela época ainda não era costume nem lei usá-lo). Acho que fiz isso, não lembro bem.
O que aconteceu depois, me contaram: numa grande avenida que corta Porto Alegre de leste a oeste, provavelmente após pegarmos no sono, ele bateu com o carro em outro que estava estacionado, no lado direito da rua, justamente o lado em que eu estava dormindo, tranquilo.
Retirado das ferragens pelos bombeiros, traumatismo crânio-encefálico, coma Glasgow 4 (bem ruim). Internação no HPS com posterior transferência para o Hospital São Lucas da PUCRS, onde eu estudava medicina e trabalho até hoje. Treze dias em coma e quatorze na UTI. No quarto, após sair da UTI, fiquei mais dez dias, com febre e uma maldita amigdalite. Não perdi o semestre na faculdade porque – providencialmente – naquele mesmo sábado, véspera do dia dos pais, os professores da PUCRS tinham entrado em greve, que durou até bem depois de eu voltar a assistir aula, cambaleante e sem firmeza ao andar.
Não lembro muita coisa daqueles dias do coma, apenas a sensação, quando acordei, de que havia dormido mais do que deveria. O engraçado é que eu sabia que estava num hospital, mas achava que era outro e tinha a impressão de que estava num quarto com uma grande janela de vidro que dava para um campo com uma colina ao fundo, um grande gramado verde e dias de sol intenso. Não tive vontade de caminhar por este campo nem seguir em direção à luz nenhuma. Acordei com uma vontade enorme de ver minha mãe.
Em 12 de agosto de 1990, morri.
E voltei.
Há exatos trinta anos.
Até.