A Viagem, sexto dia (3).
A Teoria do Brinco.
Passei no vestibular para medicina na minha primeira tentativa, aos dezesseis anos, após ter feito um ano de curso pré-vestibular em paralelo ao terceiro ano do (à época) segundo grau técnico em informática (à época, operador de computador). Para celebrar, decidi que iria furar minha orelha e colocar um brinco. Assim, iniciaria a nova fase da vida (a universidade) e as pessoas já me conheceriam usando este acessório.
O furo na orelha foi feito em uma farmácia próxima à minha casa, na zona sul de Porto Alegre. Furava – pelo que lembro – com o próprio brinco. Tudo certo. Mais ou menos. Na verdade, não.
Inflamou. Muito.
A ponto de eu ter que tirar o brinco e, quando fui recolocá-lo, não consegui. Por ter retirado ele muito cedo, antes de cicatrizar, o furo fechou. Não usei brinco durante a faculdade de medicina e nunca mais usaria. Como eu costumo dizer, paciência.
Avancemos no tempo. Um longo salto, que vai de fevereiro de 1989 até dezembro do ano 2000, onze anos e dez meses, portanto. Os últimos momentos do segundo milênio da era cristã, quase entrando no século vinte e um. Havíamos sobrevivido ao bug do milênio (milênio, que todos sabem, é o filho da Milene com o Ênio), a primeira viagem dos Perdidos já havia acontecido no ano anterior, e nos preparávamos para viajar para a Europa de novo. A Roberta e a Karina (que ainda era casada com o Paulo) não iriam, pois o Gabriel havia recém nascido, em outubro daquele mesmo ano.
Iríamos passar o Natal na Neve, no Alpes italianos, e a viagem começaria por Roma. Após uns dias em Roma, faríamos uma volta pela Itália e chegaríamos na véspera de Natal a Rasun di Sopra, para passar a noite de Natal no Hotel Andreas Hoffer, para depois seguir para a França, onde passaríamos a virada do milênio (que, como disse, não é a ‘saída do armário’ do filho da Milene e do Ênio).
Dias antes da viagem, não lembro exatamente porque, decidimos, a Jacque e eu, que eu furaria a orelha novamente. Refuraria, digamos assim. Ela refuraria. Em casa. Logo antes da viagem. E assim o fez. Encontrou o antigo “caminho” por dentro da cartilagem e colocou um novo brinco.
Inflamou. Muito.
Estávamos em Roma, como já contei, e tivemos que procurar uma farmácia para comprar um antisséptivo (Germo zero©) para tratar. Também foi em Roma que comecei com minha longa e profícua história de quedas em (e de) banheiras, mas não é o momento de falar disso...
Usar brinco acabou virando uma tradição de férias, principalmente viagens de férias, para mim. A marca de que eu estava off work, em outras palavras. Algumas vezes esquecia de colocar e, na viagem, íamos atrás e comprávamos. Seria um símbolo de liberdade, de ser quem eu realmente sou? Uma bandeira?
Não.
É apenas um acessário, supercomum, nada demais. Que eu gosto de usar, mas não uso no dia a dia porque (cada vez menos) as pessoas esperam algo mais conservador de um médico, em termos de visual. Ou sou eu quem quer fazer essa separação clara entre o “eu em férias” e o “eu sério”.
Não é importante, no final de contas.
Por outro lado, criou-se – durante a viagem – a teoria de que eu era (sou) duas pessoas, com brinco e sem brinco, diferentes entre si. O ‘Marcelo com brinco’ seria o cara mais legal, bem-humorado, de bem com a vida, enquanto o ‘Marcelo sem o brinco’ seria o sóbrio, mais mal-humorado, pouco tolerante e impaciente. Tudo mudaria ao colocar o brinco. O problema de tirar o brinco ao final da viagem seria que eu voltaria a ser o ranzinza de sempre.
Não estavam (estão) totalmente enganados. Eu, sim, estava “insuportável” antes da viagem, e ao longo dos dias fui relaxando, desestressando, melhorando o humor e me tornando – de certa forma – quem eu era (ou me considerava) há muito tempo, antes das pessoas jurídicas, do mundo corporativo, dos trabalhos mal remunerados, da pandemia, e outras complicações da vida de adulto (que já frequento há um longo tempo, eu sei). Mas vou falar disso mais adiante também.
O fato é que, de brinco, e após o incidente do milk-shake, saímos de Piriápolis e rumamos para Montevideo, a Capital do Uruguai, em um trajeto de pouco mais de 100km, aonde chegamos perto das 15h, e – após fazer checkin e deixar nossas coisas no hotel, fomos direto para o Mercado del Puerto, para almoçar – claro – parrilla. O Mercado del Puertofica na Ciudad Vieja, não muito longe do porto, por onde, após o almoço, começaríamos nossa visita à cidade. Logo na entrada, fomos abordados por uma funcionária de uma das parrilas, que mostrou o menu e prometeu um bom preço e uma sobremesa de graça se ficássemos no seu restaurante.
Topamos, com a sensação crescente de que “o golpe está aí, cai quem quer”, que pairou sobre nós durante todo o almoço e mesmo durante a sobremesa, panqueca de doce de leite. E até chegar a conta.
Não era golpe, afinal.
Foi uma refeição muito boa e com preço justo.
Do Mercado, saímos para caminhar na Ciudad Vieja. A Jacque, no caminho, enquanto esperávamos a Karina e a Roberta, foi perguntada e até hoje não respondeu à grande questão do dia:
‘Quieres yerba?’.
Até.
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