quinta-feira, março 24, 2022

Perdiditos en Uruguay (Epílogo)

Epílogo.

O que se tira de uma viagem.

 

Alguém – não tenho a referência exata – disse uma vez que ninguém volta igual de uma viagem. É uma variação de Heráclito de Éfeso, que disse que ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, porque não são as mesmas águas, e não é a mesma pessoa. Mas, sem dúvida, uma viagem é (ou quase sempre é, ou deveria ser) um curso intensivo de humildade, de conhecimento da vida e do mundo. É reconhecer – de novo e de novo – que o mundo é maior que o quarto da gente, maior que nosso umbigo. 

 

A percepção que temos de tudo, do todo, muda quando viajamos, e não falo necessariamente de viagens intercontinentais. Qualquer saída da rotina, visita a lugares diferentes, momentos em que possamos nos desligar da vida diária e olhar o movimento das coisas com maior lentidão, com menos pressa, com mais atenção até, já vale para sentirmos os “efeitos” de uma viagem. E viagens também servem para nos reconectar conosco mesmo e com os outros.




Foi o que aconteceu – de minha parte – nessa viagem que venho relatando aqui no último mês. Serviu, além de merecidas férias, e de certa maneira, para tirar o peso do mundo de minhas costas, que vinha carregando há não sei quanto tempo. E não só pelos anos de COVID, devo dizer. Esse peso, essa circunspecção, vinha de mais tempo, e as possíveis causas são as mais diversas. Havia, parece a mim agora, olhando retrospectivamente, perdido a leveza de viver.

 

E os anos de COVID, esses últimos dois anos, de afastamento das pessoas, de incertezas, contribuiu também para esse quadro. Durante esse tempo não percebia isso, pois não tinha o distanciamento necessário. Era como andar de bicicleta, seguíamos pedalando sem parar, sem pensar, num movimento automático e contínuo. Se perguntassem, estava tudo bem, estávamos levando tudo na boa. E era verdade! No microcosmos da rotina, estávamos bem, adaptados, vivendo na caverna de Platão, olhando as sombras e considerando aquilo como o mundo real.

 

A viagem para o Uruguai representou sair da caverna e olhar o mundo de novo, com toda sua luz e beleza. Não havia COVID por lá, no sentido de não ler notícias, não ter pacientes ligando, não ver televisão ou não ouvir rádio. Claro que usávamos máscaras em locais fechados, como todo mundo, mas era natural, orgânico, não forçado. A vida parecia fluir com mais naturalidade. Foi no passar dos dias de férias que fui relaxando, ficando mais tranquilo, mais leve.


                      


 

Foi impossível não lembrar de Mário Quintana, e sua ‘Canção do Amor Imprevisto’. 

 

‘Eu sou um homem fechado.

O mundo me tornou egoísta e mau.

E a minha poesia é um vício triste,

Deseperado e solitário

Que eu faço tudo po abafar.

 

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,

Com teu passo leve,

Com esses teus cabelos...

 

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender

nada, numa alegria atônita...

 

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil

Aonde viessem pousar os passarinhos’.

 

Retrospectivamente, me vi como o espantalho inútil da poesia do Quintana, que agora vivia essa alegria atônita, dolorosa e súbita, de voltar a ver a vida com uma alegria que eu não lembrava que existia. Não que eu estivesse triste ou desgostoso da vida, de forma alguma, mas – posso dizer – reencontrei um tipo de alegria e leveza que há muito não sentia.

 

Todos notaram isso, durante a viagem, tenho certeza.

 

E todos haviam sido compreensivos comigo durante o período em que estivera mais quieto e menos alegre. Mesmo nos momentos de mau humor, foram tolerantes. De novo, esses foram todos diagnósticos retrospectivos, olhando para trás, analisando a partir do que (de quem) mudou (mudei).

 

                                 


A viagem foi muito além do passeio e do descanso, como falei no início deste epílogo. Foi uma reconexão comigo mesmo e com os outros, em especial a Roberta, a Karina e o Gabriel, de quem – por circunstâncias da vida – eu estava meio distante. Foi importante também porque foi um tipo de ritual de passagem para a Marina, que não era (não é) mais a criança que viajava com a gente. Ela foi participante ativa do grupo, no mesmo nível de todos, em todos os momentos, mesmo em piadas em brincadeiras, que não poupavam ninguém. E com relação à Jacque, a viagem confirmou, uma vez mais, porque estamos juntos há vinte e sete anos: juntos, somos muito legais e parceiros. 

 

                        


Obrigado, Perdiditos.

 

Até a próxima.

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