Uma das boas lembranças que tenho do tempo da vida juliana (a saber, vida militar, caserna) além dos colegas, e de fatos aparentemente desagradáveis que na época – e muito mais agora – me divertiam porque eu sabia que iam virar boas histórias, eram as aulas de instrução, especificamente de hinos. Foi um dos poucos elogios que recebi naqueles primeiros setenta dias de treinamento militar antes de começar a trabalhar como médico no Hospital da Aeronáutica de Canoas/RS (HACO).
Eu nunca tive o perfil para ser militar, mas foi uma boa opção para quando terminei a residência médica. Bom salário, horário reduzido, bom ambiente de trabalho. Eu entrei na aeronáutica para trabalhar na UTI do HACO. Só que não existia uma UTI no HACO! Ela ia ser construída, mas entrei para ser do efetivo da UTI. Enquanto não era construída, ficaria atendendo como pneumologista, minha especialidade, aliás…
Bom, mas para ser médico da aeronáutica eu teria que ser militar. Seria segundo tenente. Para isso, era preciso treinamento militar, setenta dias vivendo a vida de soldado, marchando, cantando os hinos, aprendendo os códigos e regras, fazendo treino de tiro e o famoso campo. No final do período, seria um militar… e médico. Acima de tudo, militar.
Foram umas grandes férias, no final das contas. Os primeiros dez dias passamos sem sair do quartel, de quarentena, para adquirirmos espírito de grupo. Tínhamos aulas de manhã, de tarde e uma instrução teórica à noite. Mas também as aulas de ordem unida, aprendendo a marchar, a identificar os toques de corneta. Bom não precisar pensar em outras coisas, ou mesmo nem pensar em nada, porque era simples questão de seguir instruções e comandos. No início, tudo bem, mas aos poucos foi ficando chato, repetitivo. E surgiam situações que beiravam o ridículo de tão absurdas e que – óbvio – tinham um enorme potencial para virarem histórias que vou contar para sempre.
Como quando estávamos no campo (três dias em que acampamos e temos treinamentos militares, entres eles missões noturnas) em nossa última noite. Depois da instrução noturna, fomos divididos em grupos para ficar “de guarda” do acampamento. O meu turno foi algo tipo das 4h até as 5h. Cumpri o meu serviço e voltei para a grande barraca onde dormiam uns vinte, pelo menos. Àquela altura, decidi dormir como estava, sem nem ao menos tirar o coturno. Deitei quase na entrada da barraca, o capacete servindo de travesseiro, e fiquei ali, esperando o tempo passar.
O dia amanhecia, e eu acordado, quando vi vultos caminhando em volta da barraca. Algo estava para acontecer, e eu podia apostar que eram os mais “antigos” aprontando para nós, os aspirantes. Não deu outra: um dos “vultos” apareceu na entrada da barraca, eu de olhos semi-cerrados fingindo dormir, e ele jogou para dentro um daquelas bombas de fumaça… na hora rolei para for a da barraca e me livrei da brincadeira.
Mais tarde, estávamos todos formados em fila aguardando o café da manhã, quando me voltei para o colega de trás da fila e comentei “Puxa, SUPER-LEGAL isso de ser acordado com bombinhas…”. Nisso virei para o lado e estava o major que era nosso comandante maior ouvindo a conversa. “Como?”, perguntou. “Nada não, senhor”, respondi, no que ele me mandou “pagar dez”. Sem relutar, comecei a fazer flexões, mas sem contar em voz alta, como manda a regra. Ele disse que não estava valendo porque eu não estava contando. Respondi que estava só aquecendo, e ele me mandou “pagar” o dobro…
Mas a melhor de todas (no meu humilde ponto de vista) foi a da vez em que tivemos que apresentar uma aula para os colegas como treinamento para “falar em público”. Como eles queriam avaliar a técnica de apresentação de aulas, nos deixaram com o assunto livre. Lembro que um ia apresentar sobre Florianópolis e outro sobre uísques. Pensei, pensei, e nada vinha, não tinha nenhuma idéia de sobre o que falar. Tinha que ser um assunto que eu dominasse e não fosse muito trabalhoso de preparar. Qual seria o assunto, me angustiava, até que veio a luz: eu falaria sobre a pessoa que eu mais conhecia no mundo!
No dia, na minha vez, anunciei o meu assunto: “Eu – Visão Histórica e Perspectiva Atual”. E falei vinte minutos sobre mim. Começava desde o início “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus…”. E da leitura de um trecho inicial do Evangelho de João, eu pulava muito no tempo e falava um pouco no time do Inter da década de quarenta, conhecido como Rolo Compressor, e daí 1972, ano em que nasci. Foi uma grande viagem, mas com técnica de exposição adequada, fala pausada, tudo conforme o figurino. No final, meus colegas me aplaudiram de pé, mas isso não impediu de ser chamado na sala do comandante e ser ameaçado de prisão por desrespeito… Dava para ver, eu não nasci para ser militar…
Por que lembrei disso? Volto a falar das aulas de hinos e a um dos poucos elogios que recebi neste período. Como era boa as aulas de hinos, e como são legais os hinos, não só os militares, mas os da Pátria. Eu cantava – mesmo desafinado – com empolgação verdadeira. A sargento (Aparecida era o seu nome, acho) não pode deixar de se admirar com a empolgação com que eu cantava. Os hinos são legais.
De todas as armas, o da aeronáutica é o mais fraquinho (“Contato, companheiros, ao vento sobranceiros, lancemos o roncar, da hélice a girar…”). O do exército é legal (“Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados…”), mas o hino mais bonito entre as armas é o da marinha, o Cisne Branco (“Qual cisne branco em noite de lua, vai navegando no mar azul…). E quanto aos nacionais, o mais belo de todos é o Hino da Bandeira (“… Recebe o afeto que se encerra em nosso peito juvenil, querido símbolo da terra, da amada terra do Brasil…”). Sempre achei muito legais os hinos.
Não, não é saudades do Brasil. É que a Jacque me mandou por email algumas músicas em MP3 e, entre elas e a meu pedido, os hinos.
Cada vez me impressiono mais com a tecnologia, mas vou falar mais disso outra hora, aguardem.
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Volto a publicar, esta semana, um texto da querida amiga Lúcia, a mesma que nos divertiu e emocionou com suas “Stories About Australia”, do período que esteve “num exílio” australiano. O texto “O Fundo” é outro daqueles que nos emociona pela poesia contida, poesia essa que ela parece viver agora em sua vida pessoal, mas que não vou comentar aqui, exceto que talvez um dia desses eu escreva a sua história.
Lúcia, espere que continues colaborando com A Sopa, pois o acréscimo de qualidade com tua literatura é imenso. Ah, sem falar que isso também é uma homenagem pelo teu aniversário, domingo 31/10. Vai, e sê feliz… Quem manda o beijo é o Dindo…
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O Fundo - Lucia Stenzel
“Parece mentira, eu aqui, um homem de 95 anos sofrendo com a perda de minha amada”. Poderia ser a frase de um famoso e romântico poeta, mas é do meu avô. Um homem de muita idade, muitos cabelos brancos e muita lucidez. Enfrentar com tamanha consciência a velhice, e a morte da amada, deve doer fundo. Um fundo o qual meu avô nunca temeu.
Lembro pouco da minha infância, mas sei que eu nunca conheceria o fundo do mar se não fosse por ele. Que paciência tinha este homem enquanto se enfileiravam os quatorze netos berrando e brigando por quem seria o próximo para conhecer o fundo. “Vô, me leva pro fundo?”, perguntava eu. “Claro minha filha, mas tem que ser um por um. Espera um pouquinho que eu já te levo”.
Eu sentava na beira da praia e assistia atenta ao trajeto que logo se repetiria comigo. Ele tirava o boné, que escondia uma camada grossa de hipoglós no nariz, e la se ia o senhor de cabelos brancos, de mãos dadas com o próximo da fila. Pulávamos uma onda, outra e mais outra. Alguns truques para prender a respiração, e finalmente, logo ali depois da arrebentação, estavamos nós, no fundo.
No fundo, no fundo, nem ele dava pé. Mas quem disse que a gente percebia? Só o vô enfrentava o fundo. Poderia ser bandeira branca, amarela ou vermelha. Não tinha cor que impedisse o meu avô de repetir o ritual matinal com os netos. E depois de uma maratona cansativa, que o levava ao fundo mais de mil vezes, ele o enfrentava sozinho, com coragem e bravura. Da beira da praia só se enxergava aquele pontinho branco entre as ondas. Levado pelo repuxo ele boiava sem medo, para onde o mar quizesse o levar.
Hoje não vamos mais a praia, mas ele segue enfrentando o fundo. Quem dera eu, meu querido avô, poder lhe dar a mão e dizer para não te preocupares. Mas aqui, da beira da praia sigo te acompanhando com o olhar e te vendo boiar. Segues, com toda esta idade, nos ensinando a enfrentar o mar.
2 comentários:
Oi, Marcelo!
Realmente vc tem histórias pra contar, hein? Cada dia uma coisa nova!! Legal!!
Agora, pra quem ainda está se "acostumando" com a idéia de manter um blog, vc foi muito corajoso em abrir um segundo!! Estou curiosa pra ler as aventuras dos Perdidos.
Sobre as "regras de etiqueta" dos blogs... eu também não sei... a maioria das vezes não escrevo comentários esperando respostas, portanto também não respondo a ninguém... a não ser que me perguntem alguma coisa... aí eu mando um mail (se não der pra ser um post sobre o assunto). Mas tem algumas pessoas que respondem a todos, como o Gean, por exemplo. Não sei, acho que vai do seu gosto mesmo...
Bjo!
Luly :)
PS: Valeu pela referência!!;o)
Fala véio ! Eu semana passada não consegui colocar muitos comentários. Semana pesada...muito bloco.Aqui, afetivamente, as coisas melhoraram.
Tenho curiosidade sobre a vida militar. Faz 10 anos que estou me livrando e um dia os verdes-oliva, certamente vão me pegar. No início, sendo mandado, vai ser ruim. Agora, a hora que eu mandar... Bom um grande abraço do Jéferson.
Continua segurando aí, que nós tocamos aqui!
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