domingo, abril 26, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Quadragésimo Segundo Dia)

Aos sábados, aqui n’A Sopa no Exílio, tradicionalmente publico uma foto aleatória. Usualmente fotos que eu tirei, de lugares ou histórias passadas. 

Ontem, não publiquei.

Por quê?

Não encontrei uma foto que me inspirasse. Simples assim.

Nada a ver com nada.

Para quem pensou que eu fosse falar do Bolsonaro, do Sérgio Moro ou do coronavírus, digo que não estou com vontade. Nenhuma. O que eu penso sobre o que aconteceu em Brasília entre quinta e sexta-feira? Mesmo sem vontade, respondo para você, solitário leitor.

Acabou o governo Bolsonaro. Perdeu o trem da história, como dizem.

Todos sempre soubemos que ele era (é) um cara limitado, mas que teve a competência de canalizar e personificar o oposto do que o partido aquele que não digo o nome representava e que levou o Brasil à maior crise de sua história. Além de ser o representante da insatisfação com “tudo isso aí”, após ganhar a eleição soube cercar-se de nomes técnicos e competentes para, como se diz, tocar o barco.

O seu governo vinha indo bem, com melhora nos indicadores econômicos, medidas sendo tomadas, mesmo que o chefe do estado criasse polêmicas desnecessárias (além daquelas falsas criadas pela imprensa). Parecia planejado: ele chamava a atenção, os holofotes, para si, e quem tinha de trabalhar conseguia trabalhar sem ninguém incomodar. Lamentavelmente, não era.

Foi quando veio a pandemia do coronavírus.

Esse é um daqueles momentos-chave na História, aquela com agá maiúsculo. É uma situação sem precedentes em gerações. E é justamente nesses momentos em que surgem os grandes líderes, que comandam nações durante a travessia por tempos nebulosos.

Bolsonaro poderia sair disso como um Churchill.  

O que estamos vendo, contudo, é o presidente encolher, ficar menor e insignificante a cada dia, a cada polêmica que cria. Tornando-se irrelevante.

Infelizmente.

Nunca é bom um Presidente, alguém que deve liderar o país, tornar-se pequeno para o cargo que ocupa. 

Perdemos todos.  

Até.

PS – ainda acho que seria pior com aquele outro, que nem lembramos o nome...

sexta-feira, abril 24, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Quadragésimo Dia

Quarenta dias de isolamento/distanciamento.

Mais ou menos isso. Um dia a mais, um dia a menos, não importa. A minha contagem pessoal da pandemia completa hoje quarenta dias.

Quarenta. Dias.

Segundo a Bíblia, o número quarenta é um sinal de arrependimento, indica um tempo de expectativa ou o tempo de Deus. Várias das histórias bíblicas estão associadas ao número quarenta.

Deus fez chover por quarenta dias e quarenta noites nos dias de Noé, e comeram apenas peixe enquanto estavam arca, razão pela qual os católicos historicamente abriram mão de carne vermelha durante a Quaresma. Moisés passou quarenta dias de jejum no Monte Sinai. O povo de Israel levou quarenta anos viajando para a Terra Prometida (mesmo que o Google Maps mostre que esse trajeto possa ser feito em bem menos tempo...). Elias passou quarenta dias e quarenta noites caminhando para o Monte Horeb. Jonas profetizou quarenta dias de julgamento para que Nínive se arrependesse. Jesus Cristo jejuou durante quarenta dias no deserto e foi tentado pelo demônio. Jesus esteve fisicamente morto por cerca de quarenta horas antes de ressuscitar.

Quarenta é um número significativo.

Como é possível perceber, quarenta dias são tempo suficiente para expiar pecados, para mostrar resiliência, para nos purificarmos. Chegamos, então, ao quadragésimo dia deste estranho e meio que surreal período de confinamento e distanciamento social. O que significa isso?

Nada.

Mesmo que surjam no horizonte alguns sinais de afrouxamento das medidas restritivas que vivemos, ainda não podemos antecipar quando estaremos reunidos com nossas famílias e amigos. Quando voltarão os churrascos e os encontros. Isso é o que frustra muita gente, a incerteza de quando isso acabará. 

Vamos vivendo, então, um dia após o outro, sem poder fazer grande planos para o futuro. Como alcoolistas em abstinência, focados apenas no hoje. Faço o melhor que posso hoje, e amanhã farei o melhor que puder. E assim seguimos.

O coronavírus está sendo, além de tudo, uma lição de humildade. 

Até.

quarta-feira, abril 22, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Trigésimo Oitavo Dia

A quarentena nos proporciona oportunidades.

Ficar a maior parte do tempo em casa tem sido interessante. Arrumações em armários e gavetas, doações de roupas, algum grau de desapego, estudo, e até escrever aqui, como vocês devem ter notado...

E assistir um pouco de televisão.

Além, é claro, de filmes e séries na Netflix e Amazon Prime Video, por exemplo. Muitas opções de grande qualidade disponíveis, o que é uma grande vantagem com relação ao tempo em que eu era estudante. Só que isso foi no milênio passado, não conta...

Mas falava de televisão, não de serviços de streaming

Aqui em casa praticamente não assistimos televisão aberta. Record, Rede TV, SBT, Band e Globo não são opções, apenas quando zapeando por entre os canais. A televisão por assinatura, por outro lado, parece um mar infinito de programas ruins. Descobri esses dias que existe um canal para cães, a (óbvio nome) DOG TV. Isso, para cães. Não para donos de cães, mas especificamente para os cães. Loucura. 

Eu, por exemplo, gosto dos programas sobre o Alasca e sobre montanhas.

Isolados no Alasca, Buying Alaska, Minha Casa nas Montanhas, Sobreviventes no Gelo, e variações sobre o tema. Além, é claro, dos programas de sobrevivência, tipo Desafio em Dose Dupla, e até Largados e Pelados. Sou um sobrevivente, no sofá de casa tomando chá... 

E ainda não era disso que eu queria falar quando iniciei essa conversa com você, caro leitor. Queria, de verdade, falar de filmes que passam nos canais da televisão por assinatura.

E de tubarões.

Ontem à tarde, feriado de Tiradentes, após ter terminado as tarefas de casa nestes dias de distanciamento social, liguei a televisão no exato momento em que estava iniciando no canal SYFY o primeiro filme da série “Sharknado”, título que é uma fusão das palavras ‘shark’ (tubarão) e tornado. Isso mesmo, um tornado de tubarões. A premissa do filme é a seguinte: forma-se um grande furacão no Oceano Pacífico que resulta em vários tornados que levam junto tubarões que acabam caindo na cidade de Los Angeles.

Não só isso, os tubarões caem do céu na cidade, e ao cair – mesmo durante a queda – eles atacam as pessoas. 

Pode-se pensar que o filme foi um fracasso. 

Sim? Pensam? Pensam?

Estão enganados.

O filme foi um tremendo sucesso de público, e teve continuações. A série teve ao todo seis filmes (!). Virou cult, por ser ruim. O último episódio, o sexto filme, lançado em 2018, envolve viagem no tempo. Pois é...

Vimos, a Jacque e eu, o filme ontem.

É daqueles classificados (classificação pessoal) como ‘não força’. Premissa maluca, roteiro inverossímil, efeitos visuais fracos. Engraçado por ruim. O problema é o final, que não vou contar. Passa de todos os limites.

Acho que vou assistir os outros.

Que a quarentena acabe logo, por favor...

Até.

domingo, abril 19, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Trigésimo Quinto Dia)

As noites, por esses dias de coronavírus, tem sido boas.

O tempo maior passado em casa, a quase ausência de atividades fora de casa no período da manhã, tem garantido horas adequadas de sono, como há muito não acontecia. Uma boa notícia em meio a tantas incertezas. A melhor qualidade de sono implica em mais e diversos sonhos. Com referencias ao passado e alguma coisa do presente.

Como outro dia que sonhei com a casa da praia, uma vez mais. A casa que foi vendida há algum tempo, mas que esteve presente em nossas vidas por longos anos. Volta e meia sonho com a casa, e sei que foi vendida, mesmo no sonho. Essa última vez, ela estava à venda, e por um preço bem barato. Meus pais, que estavam comigo, tentavam me convencer de que não valia à pena comprá-la de volta, pois estava velha, com cupins e necessitaria de muitos reparos. Não sei como terminou o sonho.

Mas me fez lembrar da casa, do lugar e da turma, a Turma do Muro, como anos depois nos denominamos. Mais do que tudo, lembrei de um tempo que – como todos os que vivemos – não volta mais.

A estação, verão. Litoral norte do Rio Grande do Sul, um balneário que depois virou cidade, Imbé. A rua, uma avenida chamada Rio Grande, que saía da ponte de Tramandaí e seguia, algo curva, em direção ao norte até o final da praia, onde acabavam as casas e havia uma grande área de vegetação rasteira e areia que ia terminar onde novamente começavam as casas, mas aí já estávamos no balneário ao lado, Morada do Sol (ou Presidente, as fronteiras do litoral são sempre imprecisas). Num pequeno trecho desta avenida, entre as também avenidas Santa Rosa e Garibaldi, no terço final da quadra, mais próxima à Garibaldi, ficava a Terra (Turma) do Muro.

Indo pela Av. Rio Grande em sentido ao norte, no lado direito, começava por um campo de futebol e uma casa, o campinho do Pimenta. Era ali que ocorriam os jogos de futebol de final de tarde em que jogavam os mais velhos e que durante anos assistimos até que fomos “promovidos” e passamos a jogar ali também, todos os finais de tarde do verão, de pés descalços. Ao lado da casa do Pimenta, estavam o campo de futebol e a casa do Adriano, com o muro – ponto de encontro da turma e que deu nome ao grupo – em frente. Era ali que nos encontrávamos todos os dias, manhã, tarde e noite, antes de sair e na volta das festas.

A casa do Adriano era uma casa de alvenaria, grande, térrea, com o gramado ao lado. No fundo, um balanço amarelo, destes para duas pessoas. Nos fundos da casa, havia um terreno baldio, onde uma vez cavamos uma cova rasa e enterramos o Vítor para depois assustar o Beto e o Fernando. Ao lado da casa do Adriano estava a do Titico, de nome José Antônio, mas que só era chamado assim por sua mãe quando ele havia feito algo que não devia. Era um chalé de madeira que depois foi revestido de tijolos. 

Em frente às casas do Adriano e do Titico, do outro lado da rua, estava a da Stefania, irmã mais velha dos menores que nós Ramiro (nem tanto) e Estevão. Uma casa de pedra, pintada de branco com portas e janelas escuras, sem muro frontal. Ela não fez parte da turma nos seus primórdios, pois ainda não passava o verão lá, e quando começou a passar suas férias em Imbé levou consigo duas amigas, a Mônica – de passagem fugaz pela turma – e a Juliana. Ao lado da casa da Stefania, finalmente, ficava a casa do Vítor, o mais velho da turma (três meses mais velho que eu) até a entrada do Paulo Marcelo, um mês mais velho que ele. Também deve ter sido um chalé de madeira que foi revestido de tijolos, mas não tenho lembrança de como era anteriormente.

Atravessando a rua novamente, depois da casa do Titico, havia duas casas, a do Marcelo, que morava em Gravataí e era dos mais velhos, mais ou menos cinco anos a mais que os mais velhos da nossa turma, e uma casa azul de madeira que ficava no fundo de um terreno cheio de altos pinheiros. Ao lado desta, em dois terrenos, estava a casa em que o Neni (meu irmão) e eu passávamos os verões, e que ainda aparece volta e meia em sonhos. 

Eram duas casas, a da frente, um chalé verde de madeira com janelas e portas brancas, e a casa dos fundos, de pedra, que havia sido uma garagem e foi aumentada para poder hospedar mais pessoas. A casa dos fundos era composta de uma copa/cozinha/garagem, com churrasqueira, fogão, geladeira, um banheiro (rosa, naquele tempo), uma salinha de estar e um grande quarto que fora dividido em dois. Com essa divisão, havia ficado com um quarto com duas camas e janela e a “solitária”, como chamávamos, um quarto pequeno sem janelas e duas camas, sendo uma de molas. Durante um tempo, dormíamos na casa da frente e depois, maiores, passamos a ficar na casa dos fundos, onde podíamos chegar a qualquer hora da madrugada que não acordaríamos o pai e a mãe.

Separada por um pequeno muro de cerca de 50cm, ficava a casa dos irmãos Beto e Fernando e seu primo Júlio César, o Julinho. Assim como a nossa, que fora do meu avô e foi herdada pelos meus pais, a casa deles era do avô comum. Por serem uma família grande, com vários irmãos e muitos primos, a casa estava sempre cheia. Em frente à casa deles, em diagonal, ficava a casa da Adriana. Ao lado desta, e já na esquina com a Av. Garibaldi, estava a casa das irmãs Claudine e Valerie. 

Este foi o núcleo geográfico inicial da ‘Turma do Muro’, que depois agregou territórios em outras ruas do Imbé, no caso dos irmãos Rafael e Tatiana, da Carla, da Laura, da Milene, do Duda, do Paulo Marcelo, do Tuca, da Ana Amélia – que dizia que ia ser Paquita – da Florence e até em Tramandaí, na casa do Fernandão, sede dos famosos churrascos anuais da Perversa (histórias para um dia desses).

Muitas histórias, muitas lembranças.

De tempos em tempos ainda nos reuníamos, o que agora não é uma opção, só que esses dias de distanciamento social faz bater aquela vontade de estar junto novamente, de lembrar de antigas histórias,  reconectar com nossa própria história, de nos lembrarmos quem fomos e quem somos. 

Até. 

sexta-feira, abril 17, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Trigésimo Terceiro Dia

Sexta-feira.

Não tenho vontade de falar de vírus.

A semana foi pesada, em termos de notícias relacionadas à pandemia. Houve a troca do Ministro da Saúde, o que mobilizou a maior parte das manchetes por esses dias. Difícil.

Eu achava que o Mandetta vinha bem, mas quem se importa com o que penso, não? O novo ministro parece competente como, de novo em minha opinião, era o anterior. Esperemos que tudo dê certo. Ainda estamos na expectativa dos pacientes, que ainda não chegaram.

Mas eu disse que não queria falar de vírus, afinal é sexta-feira.

Que é domingo, como quase todos os dias têm sido.

Mesmo assim, a semana está terminando, e tudo está tranquilo.

Nem sempre é assim, sabemos.

O dia foi em casa, de arrumação de armários. Invadimos o “quarto da bagunça”, e foi possível dar uma boa organizada. Temos uma boa quantidade de doações a serem feitas, roupas entre elas, que levaremos amanhã a quem precisa. À tarde, teve jogo de videogame com a Marina, antes da rotina de atividade física (mínimo de sessenta minutos diários).

Agora há pouco, fizemos hambúrguer.

Sono.

Até.

segunda-feira, abril 13, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Nono Dia

Eu pequei.

Minha culpa, minha máxima culpa.

Confesso a vocês, contrito, um pecado cometido no final de semana que passou, no sábado, para ser mais preciso. À tarde. Por uma hora inteira.

Saí de casa.

Sozinho.

Para andar de bicicleta.

Durante cerca de uma hora, de roupa adequada, capacete, óculos e máscara facial, pedalei vinte e um quilômetros pelas ruas de Porto Alegre, parte pela orla, que estranhamente estava com o trânsito bloqueado para carros como normalmente fica, mas não deveria durante o período em que pouco devemos sair de casa. Não era o único (o que não diminui a gravidade do pecado). Diversas pessoas fazendo o mesmo, sozinhas ou no máximo em duplas. O menor movimento de carros tornou mais seguro trajeto que fiz.

O vento esteve contra boa parte do trajeto, em que minha preocupação maior variava entre os efeitos de um mês sem pedalar na força das pernas e me manter afastado de outros praticantes de exercício. Sempre usando a máscara facial, e ouvindo música, claro. A playlist chamada ‘Quarentena’, do Spotify

Foi estressante, confesso.

O pensamento recorrente era de que eu estava desrespeitando as regras de distanciamento social (apesar de estar sozinho, sem conversar com ninguém, procurando não me aproximar de ninguém) e de ficar em casa. Mesmo que o próprio Ministro da Saúde tenha dito que não teria problema. E se alguém me visse? Pior, se eu fosse fotografado e – na segunda-feira, hoje – eu aparecesse na capa do jornal com a manchete ‘Pneumologista não respeita a quarentena’. Paranoia, eu sei, mas vai saber...

Tinha me planejado me exercitar dessa forma no sábado e no domingo.

Desisti.

Não vale o estresse, e a hora é de ser solidário. Vou ficar em casa, para proteção de todos (exceto para ir ao consultório e ao mercado, comprar gêneros alimentícios).

De novo, aceitem minhas desculpas.

Até.

domingo, abril 12, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Oitavo Dia)

O coronavírus já tinha alterado alguns dos meus planos. Em 2003.

A SARS, causada por um coronavírus que veio da China, surgiu no final de 2002 e parou os hospitais em Toronto naquele momento. Isso resultou em um ano de atraso da minha ida para os Pós-Doutorado (que, em realidade, ia ser para fazer o trabalho de doutorado mas, devido ao tempo que levou entre surgir o convite e eu efetivamente ir para lá, o que deu tempo de terminar o doutorado o Brasil, acabou sendo pós-doutorado). Foi minha primeira experiência com os efeitos de um coronavírus, mas não é disso que quero falar.

Quero falar de gavetas. E da rotina.

Ambas são, mesmo subestimadas e até injustiçadas, parte fundamental de nossas vidas.

Concluí isso, de forma definitiva, há mais de quinze anos, quando cheguei para morar em Toronto para realizar meu pós-doutorado. Após uma semana morando em um dormitório estudantil que servia de hostel durante as férias da Universidade, aluguei o apartamento que seria minha casa durante os dois anos que em vivi no Canadá. O endereço era 35 High Park Avenue, Apt 2105. Ficava a menos de 100m do High Park, o maior parque de Toronto. Ficava no vigésimo primeiro andar e, infelizmente, a vista não era para o parque. Ainda assim, era uma grande vista.

A mudança foi em partes, afinal eu estava me mudando para um apartamento vazio e não tinha carro. As malas levei de metrô. Comprei o básico no Walmart e na Canadian Tire.  O supermercado, o No Frills. Após a mudança, a primeira revelação: não havia gavetas em casa (até porque não tinha móveis, apenas uma cadeira de praia, e um colchão. Nos primeiros dias, usei a caixa do forno de micro-ondas como mesa de cabeceira, e – no primeiro sábado no apartamento novo – saí circulando pelo bairro e, ao encontrar um garage sale, comprei um tapete, um abajur e – justamente – uma mesa de cabeceira com uma gaveta.

Gavetas são importantes por suas múltiplas funções.

Uma vida sem gavetas é uma vida onde não podemos guardar as pequenas coisas que nos são queridas, fotos, guardanapos de papel com filosofias e descobertas feitas à volta de uma mesa de bar, relógios que não funcionam mais, cartões de Natal antigos. Ou mesmo canetas, documentos, antigas fotos 3x4, etc. 

Gavetas são também um depositário de nossas memórias. 

Assim como a rotina.

Em tempos de distanciamento social, percebemos a importância da rotina, que é fundamental para a sanidade do ser humano. Sem a rotina, sem método, sem rituais, seríamos ainda selvagens correndo atrás de animais selvagens e sendo nômades. Foi a rotina que trouxe a civilização. A civilização surgiu também da hipocrisia, mas isso é assunto para outra oportunidade. É  a rotina que nos dá referências, rumo. Sem ela, ficamos perdidos, como se suspensos no ar, sem ao menos saber onde ir. 

Uma das angústias desse período de quarentena é termos que criar uma rotina de trabalho, de convivência. Não estamos de férias, estamos forçados a ficar o maior tempo possível em casa, para nossa proteção e para protegermos os outros. Como ser produtivo nesse momento de incerteza?

Antes de mais nada, temos que ser tolerantes conosco mesmos e com os outros em nossa volta. Não nos cobrar demais, não ser tão graves, por esses dias. Tentar manter o moral alto enquanto atravessamos a tempestade.

Que, certamente, vai passar.

Até. 

quarta-feira, abril 08, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Quarto Dia

Tem muito especialista por aí.

As redes sociais nos deram a oportunidade de ter acesso a milhões de especialistas sempre prontos a nos dar a palavra final sobre o assunto que está mais em destaque no momento. Atualmente, claro que é o coronavírus.

Mas há poucas semanas era o Trump. Ou o Bolsonaro. Ou o Brexit.

Não importa, sempre os especialistas estão à disposição. E são sempre os mesmos. Não importa o assunto, eles são sumidades, eles entendem tudo sobre o assunto da semana. Só eles conhecem, como diriam os Titãs, ‘a melhor banda de todos os tempos da última semana’.

São uns chatos.

Eles gritam, fazem barulho, atacam quem não pensa como eles, agridem.

Continuo com a ideia que não tenho como saber tudo sobre todos os assuntos. Humildemente, procuro saber muito sobre alguns assuntos, e ter uma razoável ideia sobre diversos outros. Sempre lembro de ter assistido uma entrevista do Nelson Motta, numa Feira do Livro de Porto Alegre há muitos anos, em que disse justamente isso, que seu objetivo era ser um generalista, saber um pouco sobre muitos assuntos. Ou algo assim, mas essa foi a ideia que me marcou.

O que incomoda, atualmente, é que todos tem suas fortes opiniões sobre tudo no mundo, o que é um direito de cada um, só que acham que sabem tudo sobre todo tudo e ainda fazem questão de gritar a plenos pulmões nas redes sociais. 

 Que tem as tornado muito, mas muito desagradáveis.

Saco.
  
Até.

segunda-feira, abril 06, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Segundo Dia

Ao abrir os olhos, hoje cedo, ao acordar após uma noite de sonhos estranhos, vários, entre eles um sobre uma discussão entre colegas de trabalho sobre casos de coronavírus, e também um café numa improvável Porto Alegre em que cafés são escondidos em segundos andares de velhos casebres, um pensamento foi inevitável.

É domingo. De novo.

Como foi ontem e como será amanhã.

Pausa para um suspiro de resignação, afinal nesse momento não há nada que se possa fazer quanto a isso, a não ser viver num recorrente domingo. Dizem que as coisas na vida se dividem em dois tipos: as que podemos mudar e as que não podemos mudar. Para as primeiras, todo nosso esforço. Para as outras, paciência. Resignação. 

É justamente o que vivemos agora, e temos que ter resiliência, sabemos todos. E vamos levando.

Não tenho ido ao consultório todos os dias. Mas a minha agenda permanece aberta para quem quiser marcar consultas. Quando preciso, estou lá. Acontece que boa parcela dos pacientes está apreensiva em sair de casa e ir consultar. Em hospital, nem pensar. É um efeito colateral do momento, mas sabemos que outras doenças continuam ocorrendo, e que precisam de cuidado. Por isso, muitos atendimentos online, que posso fazer de casa. Orientações, renovação de receitas. 

Seguimos. Isolados, distantes, a postos.

E torcendo que a tempestade não seja tão violenta...

Até.

domingo, abril 05, 2020

A Sopa

(Crônicas de uma Pandemia – Vigésimo Primeiro Dia)

O Ano da Peste.

Quando se fala em “Um Diário do Ano da Peste”, a referência que se tem é o livro de Daniel Defoe, que reconstitui o verão de 1665 em Londres, quando a cidade assolada pela peste bubônica. Num momento de liberdade poética, talvez num timing não muito adequado, dois mil e vinte – para mim – será lembrado como o Ano da Peste.

Pois é.

O meu aniversário no Ano da Peste. Vou lembrar, certamente.

Volto ao início do ano de 2002, quando ia fazer trinta anos. Escrevi uma Sopa (que ainda não era blog, mas enviada por e-mail aos assinantes) em que dizia que seria um ano inteiro de comemorações, em que as pessoas deveriam celebrar, e – onde houvesse duas pessoas celebrando algo por qualquer motivo – eu estaria em espírito junto a elas.

Exagero, claro.

Mas reflete o espírito de um tempo, quem eu era naquela época. Era o tempo da Sopa de Ervilhas Anual do Marcelo, que naquele ano foi na véspera da final da Copa do Mundo em que o Brasil ganhou o pentacampeonato, e época também da Banda da Sopa. Dezoito anos atrás.

O tempo passou, o mundo mudou.

Eu mudei.

Ao longo do tempo, tornei-me mais introspectivo, menos expansivo. A Sopa de Ervilhas deixou de acontecer (parecia ter perdido o sentido, não sei), e perdi a vontade de grandes comemorações de aniversário, por exemplo. Continuei gostando de estar junto às pessoas, não deixei de valorizar as relações. Nunca perdi a noção de que o sentido da vida são as relações que temos, as pessoas cujas vidas tocamos. Apenas fiquei um pouco mais quieto, no meu canto.

Já falei muito das voltas que a vida deu nos últimos anos, em termos profissionais. Aceitei tarefas, trabalhos e responsabilidades que deram uma grande satisfação profissional, em termos de reconhecimento e retorno financeiro. Foi muito bom, mas – disse e redisse isso diversas vezes já – cobrou um preço.

Com o movimento de retorno, digamos assim, que fiz no ano passado, em parte planejado e em parte levado pelas circunstâncias, passei a refazer alguns caminhos que tinha deixado de trilhar, e rever algumas paisagens que havia deixado de olhar. Passei a correr menos, para poder olhar por onde ando.

A quarentena imposta pela pandemia de coronavírus, que hoje entra na terceira semana, colocou a vida em suspenso. Tudo parou, prazos se estenderam, passamos a viver um dia após o outro. Não há planos imediatos, não sabemos quando vai terminar. A incerteza dos prazos causa angústia. Mas não temos muito o que fazer, além de tomar os cuidados recomendados pelas autoridades de saúde, distanciamento social, lavagem de mãos e – agora – uso de máscaras para todos.

Cinco de abril.

E chegamos ao meu aniversário, em plena quarentena, em meio ao ano da peste versão século vinte e um. Passamos em casa, a Marina, a Jacque e eu. Ligações de vídeo, mensagens de WhatsApp, mensagens nas redes sociais. Não ficamos sozinhos, nós os três. Mas seria muito melhor se estivéssemos com o resto da família, e com os amigos. A vida é sempre melhor com a família e os amigos.

Quando o vento baixar, quando a tempestade passar.

Planos, sempre fazer planos.

Até.

sábado, abril 04, 2020

Sábado (e um lugar)

                      Big Tignish Lighthouse, Tignish
                      Prince Edward Island, Canada
                      Outubro/2019


                      Stay safe, stay home!

sexta-feira, abril 03, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Décimo Nono Dia

Cuidado.

Um alerta que sempre faço a mim mesmo (e, ainda assim, algumas vezes me passo): temos que ter cuidado com o que dizemos e/ou escrevemos. Sempre, é óbvio, mas em especial em tempos extraordinários como esse que vivemos, de nossa vida estar em suspenso e não sabermos até quando. E ainda mais em tempos de redes sociais.

Estamos praticando o distanciamento social, de quarentena.

Uma orientação médica, técnica, determinada por estudo de evidências científicas, não baseadas em “achismo” ou medo. Que seguimos porque é o certo. E seguiremos até que essa orientação mude, o que ocorrerá caso do surgimento de novas evidências científicas que porventura mudem isso.

Assim é a ciência. As verdades são verdades até que surjam provas em contrário. A Terra não é plana, não é o Sol que gira em torno da Terra, todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele, a mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida e é produzida na direção de linha reta na qual aquela força é aplicada, a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade: as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos. 

Durante muito tempo, eu brincava que as pessoas podiam ter opiniões, mas eu não: meu compromisso era com a verdade... Brincadeira, claro, e poderíamos aqui entrar em uma longa discussão sobre dogmatismo e relativismo moral, mas não é esse o meu foco. Quero voltar ao cuidado com o que dizemos e/ou falamos e esse momento de apreensão que vivemos.

Estamos num mundo onde todos se acham na obrigação de emitir opiniões, de “gritar” ao mundo o que pensam. As redes sociais são um prato cheio disso e, mais, como Umberto Eco disse no já longínquo ano de 2015, as redes sociais deram voz a uma “legião de imbecis”. O que reforça o cuidado que procuro ter com o que digo. Aqui mesmo, neste espaço, há alguns anos, já tive problemas por escrever um texto não politicamente correto – uma piada interna entre amigos – e ser “censurado” por pessoas que não me conheciam. Acontece, e passei a ter mais cuidado com o que escrevo.

Todo esse longo preâmbulo para dizer que, por esses dias, quando um médico – seja qual for a especialidade – vai às redes sociais dar sua opinião sobre a atual pandemia, seja ela qual for, existe uma potencialmente grande audiência que está ansiosa para ter sua opinião pessoal “validada” por um especialista. Se o que esse especialista diz vai contra o que mundo científico pensa a respeito, que é baseado nas evidências disponíveis, ele pode estar incorrendo no erro de estimular as pessoas que esperavam por alguém que validasse suas falsas crenças a desrespeitarem as recomendações vigentes, e não só se colocar em risco, mas colocar outros em grande risco.

O que estamos vivendo não é brincadeira.

Temos que ter cuidado com o que dizemos.

Até.

quarta-feira, abril 01, 2020

Crônicas de uma Pandemia – Décimo Sétimo Dia

Ontem não escrevi.

Estava cansado.

Não de trabalhar, imagino, apesar de ter sido dia de consultório. 

Saí de casa pouco depois do meio-dia, algum movimento de carros, mas pouquíssimas pessoas nas ruas. Parecemos num eterno domingo, vivendo todos os dias o mesmo dia. As mesmas notícias, o mesmo bater de panelas às 20h30. Por que batem as panelas? É sempre contra o governo?

Groundhog Day.

O clássico filme de 1993 com o Bill Murray e a Andy MacDowell, no Brasil chamado Feitiço do Tempo. Ele é um repórter do tempo que fica preso revivendo o mesmo dia repetidas vezes, no Dia da Marmota. Já assisti incontáveis vezes.

Mas dizia que parece que estamos vivendo o mesmo domingo todos os dias. Ao chegar no hospital, poucos carros no estacionamento dos médicos. O caminho até o consultório é solitário, sem encontrar nenhum rosto conhecido, a Associação dos Médicos, ponto do cafezinho diário e do encontro com colegas e amigos, está fechada por razões óbvias. O restaurante, com a mesa reservada dos médicos e pescadores, está fechado.

A primeira paciente da tarde é uma colega de faculdade, que testou negativo para o COVID-19, mas que não está bem, ambos, ela e eu, de máscara. Não parece ser, mas encaminho para uma tomografia para termos certeza que não é nada demais. Foi normal, para alívio de todos nós. Nenhuma suspeita durante a tarde, mas entre um paciente e outro recebo a mensagem de um ex-aluno cuja mãe está sendo avaliada para possível internação em outro hospital aqui em Porto Alegre. E ele não está na cidade.

Demoro um pouco, mas consigo contato com o colega que está na linha de frente e que avaliou a paciente: não precisou internar, para nos deixar mais calmos.

Os dias passam assim, quando não estou no consultório estou em casa. E, em casa, muitas mensagens, muitas ligações de pacientes. Além de orientar, tento tranquilizar, até onde é possível fazer isso.

Faz parte da missão.

Até.