quarta-feira, março 23, 2005

E não é que voltou a nevar?

(cheguei em casa, fiz o chimarrão e fiquei olhando a neve cair, ouvindo Jayme Caetane Braun)


De onde me vem, Cordeona, o formigueiro
Que sinto n`alma, ao te escutar floreando?
E essa vontade de morrer peleando.
Será que um dia eu já não fui gaiteiro???

De onde me vem esse tropel no pulso,
E esse calor de fogo que incendeia?
Por que será que fico assim, convulso,
E só de ouvir-te o sangue corcoveia???

É o atavismo, eu sei, Cordeona amiga,
Sem que tu digas, sem que ninguém diga,
Parceira guasca que nos apaixonas.

E se mil vidas Deus me desse, um dia,
Uma por uma delas, eu daria,
Prá ter mil funerais de mil Cordeonas!!


Vinte e três de março de 1985.

Sábado. Acordei com a voz da minha mãe acordando o meu pai no quarto ao lado e pedindo para que ele descesse e fosse até o quarto onde minha avó dormia naqueles dias, pois algo parecia não estar bem. Lembro de não ter dormido após isso, acompanhando o movimento que se seguiu, sobe e desce das escadas, telefonema para o médico dela, vozes, e a certeza de que algo não estava bem.

Minha vó, mãe da minha mãe, era a última dos meus avós viva. Quando nasci, meus avós paternos já haviam morrido, e meu avô materno – médico – morrera seis anos antes, em 1979, quando eu tinha sete anos, de infarto agudo do miocárdio, no aeroporto de Lisboa, justamente quando chegava à Europa para uma viagem de férias com minha avó.

Desde que me lembro da minha avó, ela já tinha câncer. De mama. Havia operado, mastectomia bilateral, e feito radio e quimioterapia. Lembro de quando ela perdeu o cabelo pela quimioterapia. Usava uma peruca e brincava com fato, principalmente impressionando meus primos menores. Sempre bem humorada é como lembro dela, e existem muitas histórias que costumamos volta e meia relembrar. Eu era o seu primeiro neto.

Aquele março de 1985 ela foi ficar lá em casa, se não me engano ao sair de uma internação no Hospital da PUCRS, o mesmo em que, anos depois, fiz a faculdade, residência médica e fui médico contratado. Tinha ido ficar lá em casa e, por estar com dificuldades de subir as escadas, montamos o quarto dela na parte térrea da casa. Na copa, onde fazíamos as refeições, junto à escada, colocamos a cadeira de balanço onde ela ficava (e que está no mesmo lugar até hoje). Foi sentada ali, uns dias antes de morrer, que vi ela dizendo que achava que “desta vez…” fazendo sinal com a mão fechada e apontando o polegar para baixo, indicando que achava a coisa não ia terminar bem.

De certa forma, terminou. Morreu dormindo, sem dor, sem maiores sofrimentos. Exceto o nosso, que sempre achamos que essas coisas acontecem cedo demais.

Naquele sábado, fui levado para a aula de vela que tinha. Velejei sozinho, ouvindo o vento e o barulho da água, e pensei na finitude humana e no sentido da vida. Tinha doze anos.

Vinte e três de março de 1995

Quinta-feira. Médico-residente de primeiro ano de clínica médica no Hospital São Lucas da PUCRS. Passando de estágio pelo UTI. Depois de dois meses e vinte dias de residência, assinei meu primeiro atestado de óbito. Ao voltar para casa, sozinho, pensei na finitude humana e no sentido da vida. Tinha vinte e dois anos.

Vinte e três de março de 1996

Sábado. Santa Cruz do Sul/RS. Casamento do Caio e da Aline. Eu e a Jacque fomos padrinhos. Festa muito legal. Após uns uísques a mais convidei todos para o nosso casamento, que seria em seis meses (e não era efeito do álcool). Ao voltar ao hotel, após a festa, pensei nas voltas que o mundo dá e no sentido da vida. Tinha vinte e três anos.

Vinte e três de março de 2005

Quarta-feira. Toronto, Canadá. Estou morando aqui sozinho há sete meses, e devo ficar mais um ano e meio. Em nove dias, vou ao Brasil para passar quinze dias com a família e os amigos. Terminei o doutorado em dezembro, e estou aqui num pós-doutorado. Sentado em frente à janela, vejo a neve cair. Em silêncio, penso nas voltas que o mundo dá e no sentido da vida.

Tenho trinta e dois anos.