A minha rotina de médico não permite, na maior parte dos dias da semana, que eu consiga almoçar com a tranquilidade que acho necessária. Quase sempre tenho algum tipo de atividade na hora, ou logo após o almoço. Então é sempre corrido.
Exceto pela quinta-feira.
É o único dia da semana de trabalho em que consigo almoçar com calma, mesmo que não em casa. É um dos dias em que almoço com o mesmo grupo de colegas (já falei disso, eu sei) no restaurante aqui junto ao Centro Esportivo da PUCRS, ao lado do Hospital e do Centro Clínico da PUCRS. É nossa turma da ‘Mesa Reservada”.
Como também já contei, normalmente sou o mais novo do grupo, que conta com vários colegas que foram meus professores e que agora são bons amigos, alguns já com mais de oitenta anos. É uma ótima convivência. Assuntos leves, brincadeiras, algum bullying uns com os outros, como em qualquer turma por aí. Às vezes, contudo, o clima fica mais denso.
Esses dias, conversávamos sobre um amigo de um de nós que está internado em uma UTI, inconsciente, em hemodiálise contínua, com o fígado dando sinais de falência, infecção urinária e respiratória. Por trás de tudo isso, um câncer em estágio terminal, com metástases cerebrais. Ou seja, está morrendo, infelizmente. E a conversa derivou para a finitude da vida, a morte e a negação da mesma.
Falou-se de como atualmente, ao invés de aceitar aquelas situações em que a morte não é uma intercorrência, mas sim um evento final, um desfecho. Que se prolonga o sofrimento do paciente na tentativa de evitar um final inevitável. Foi quando lembrei da história da ‘Mamba’, contada pelo saudoso Dr. Leonel Lerner, meu professor e colega dos outros presentes na mesa.
Diz história que dois náufragos chegaram a uma ilha e foram capturados por uma tribo de canibais. Antes de iniciar os ritos da refeição foram dadas a eles duas opções: poderiam ser mortos diretamente, de forma indolor, ou serem picados por uma cobra, a famosa Mamba Negra, e passarem por sofrimento atroz, dores terríveis, e – remota chance – não morrerem. O que eles decidissem seria feito.
O primeiro optou pela mamba.
E foi horrível.
Horas de gritos de dor, espasmos terríveis, convulsões generalizadas, hemorragias, sangue jorrando de todos os orifícios, olhos esbugalhados, delírios. Até que morreu. Todos estavam em silêncio, chocados. O segundo e último náufrago, impressionado pelo que presenciara, resignado com seu destino e desejando abreviar seu sofrimento, foi direto, sem dúvidas: queria a morte.
Foi quando o cacique da tribo de canibais disse que tudo bem, mas antes “só um pouquinho de mamba...”.
Isso tudo para que refletíssemos com relação à diferença entra tratar um paciente, trazer conforto, e apenas prolongar o sofrimento dele por não aceitação de que, algumas vezes, não temos mais nada a fazer, e o fim é inevitável.
Nunca esqueci esse ensinamento.
Até.