Justiça?
Imagine comigo, caro leitor.
Suponha que você está doente e os médicos dizem que a única saída seja um transplante. De coração. Ou pulmão, não importa. O fundamental, neste momento, é saber que você está doente e precisa de um transplante para sobreviver. Tudo começa aí, com você entrando para a ‘lista de espera’ de doadores.
Como funciona essa ‘lista de espera’?
Existe uma Central de Tranplantes em cada estado (se não me engano, no Rio Grande do Sul tem). Após a constatação da necessidade do transplante e da avaliação do seu estado clínico, você entra na lista de espera. Que é organizada basicamente por tipo de transplante, gravidade do doente, e ordem de chegada.
Outra característica da lista é que ela é democrática. Todos são iguais. Não existe a possibilidade de alguém “comprar” um rim ou um coração para transplantes. Quando surge um doador, ele é avaliado como potencial doador e procura-se na lista o primeiro na ordem e que é compatível com as características do doador. Uma decisão técnica, enfim.
Voltemos a falar do seu caso, que está na lista esperando por um transplante. Imagine agora que você é um dos próximos a ser chamado, depois de – sei lá – dois anos aguardando ansiosamente, e que surge um doador compatível com você. Felicidade, expectativa! Mas, do nada, surge um advogado e apresenta um mandado de segurança obrigando a equipe médica a fazer o transplante em outro paciente, que não é mais grave que você e nem estava na lista de transplantes. Como você se sentiria? Pois é, é mais ou menos isso que tem ocorrido em Porto Alegre, com casos de cirurgia da obesidade.
A cirurgia bariátrica (ou da obesidade) é uma forma de tratamento da obesidade mórbida que se mostrou efetiva, desde que feita com critério e com acompanhamento prévio e posterior à cirurgia realizado por equipe multidisciplinar. Além dos cirurgiões, a equipe deve ser composta de endocrinologista, clínicos intensivistas, nutricionistas, psiquiatras e psicólogos. E o acompanhamento deve ser a longo prazo, porque a cirurgia é de grande porte e modifica muito do organismo do operado, que pode ter sérias deficiências nutricionais se não acompanhado “de perto”. Isso sem falar nos distúrbios “emocionais” envolvidos (aliás, nesta terça-feira, 29, a minha afilhada Lúcia defende sua tese de doutorado exatamente sobre o assunto, na PUCRS em Porto Alegre).
Com tudo o que falei, vocês devem imaginar que é um tratamento caro, pois envolve uma equipe grande de profissionais e que demanda tempo de avaliação e acompanhamento, e estão certos. Contudo, esse tratamento é também feito pelo SUS, e o Hospital da PUCRS, através do COM (Centro de Obesidade Mórbida), foi o primeiro centro gaúcho a ser credenciado para fazer esta cirurgia pelo SUS. Que como vocês sabem, paga pouco e com muito atraso. Em virtude disso, a capacidade do COM é operar dois a quatro pacientes por mês através do SUS.
Isso porque os paciente só são operados após extensa avaliação feita por toda a equipe, muitas discussões sobre prós e contras em cada caso específico. Como a demanda é grande e a disponibilidade é pouca, surgiu uma lista de espera para a cirurgia. E essa espera, pelo SUS, é de cerca de dois anos (em São Paulo, até dez). É ruim, é muito tempo, mas o porquê disso é outra história.
O que tem acontecido, nos últimos tempo, é que tem surgido pacientes que não estavam na lista, não foram avaliados, mas tem um advogado que se apresenta com os mesmos com um mandado de segurança expedido por algum juiz determinando que o paciente seja internado e operado.
Fazer o quê, neste caso? Respeitar a decisão judicial, não há opção. Mas eu pergunto: e os outros pacientes? Que estão fazendo tudo pela via correta, sendo avaliados adequadamente e esperando pacientemente e esperançosos a sua cirurgia que, agora, pode ser adiada por decisão de um juiz que “ordena” que outro paciente seja posto na “frente da fila”.
Insisto, não me refiro a pacientes graves, que estão correndo risco iminente de morrerem por sua doença, porque esses – dentro de critérios de urgência – acabam sendo operados antes. Não, esses pacientes são tão doentes quanto todos os outros que esperam a cirurgia. Por que têm o privilégio de passar na frente? Por que pagam um advogado? Pagam um advogado para se operarem pelo SUS?
Não sei vocês, mas eu não consigo achar isso certo. E, levando-se em conta que a mortalidade por obesidade mórbida é de 4% ao ano, sabemos que morrerão pacientes à espera e que tiveram sua cirurgia adiada por uma ordem judicial. E aí? Como determinar que uma pessoa deve ter prioridade sobre outra se as duas são iguais?
Algum juiz vai chamar alguém da equipe médica para dar seu parecer técnico? Porque, até agora, as decisões tem se dado a partir de um lado da história. Isso é justiça?
Mais: um paciente com uma ordem de permanecer internado até que seja operado, pode ficar semanas, até meses, internado, enquanto é preparado para a cirurgia, ocupando um leito, como se estivesse num spa, enquanto as emergências estão lotadas, e pessoas morrem. Quem se responsabiliza por isso? São os médicos que tem que fazer isso, resolver os problemas estruturais do sistema de saúde? E é uma ordem judicial que vai fazê-lo?
Lembro de uma colega, há um tempo atrás, que estava de plantão numa emergência lotada, todos pacientes graves, todos sob monitorização cardíaca, e apareceu um mandado judicial exigindo que internasse um paciente que necessitava de monitorização cardíaca também. Como todos estavam ocupados, ela resolveu ligar para o juiz e pedir para que ele determinasse quem deveria morrer para que a ordem dele fosse cumprida. Não conseguiu falar, era domingo e ele estava fora de casa. Havia assinado a ordem no seu plantão e saído, enquanto ela, na linha de frente, tinha que atender a todos sem ter meios para isso. Eu também já passei por situação parecida, só para constar.
Voltando ao caso que eu contava – e sei disso em detalhes porque a Jacque trabalha no COM –, pensei que uma solução para isso, se o problema persistir ou aumentar, é suspender as cirurgias pelo SUS até que seja esclarecida a situação. Que a justiça saiba o que acontece, que ouça os dois lados da questão. Caso contrário, perdem todos.
(e você, o que acha disso? Se fosse você quem estivesse esperando pela cirurgia e alguém passasse na sua frente sem ter indicação médica para isso?)
8 comentários:
Eu ia ficar muito puta!
Eu acho isso um absurdo, porque um tem direito de passar na frente do outro?! Ainda mais se ele nao ta nem pra morrer!?
Absurdo, absurdo, absurdo!
Olha, tu deves saber que 95% dos juízes brasileiros acham que são deuses, por isso fazem estas barbaridades. Os outros 5% tem certeza disso. Também deves ter sabido do caso de um juiz carioca que recentemente pediu e obteve ja Justiça o direito de ser chamado de "doutor" pelos seus vizinhos e funcionários do seu condomínio. Como se o título de "doutor" confira alguma autoridade a alguém, do ponto de vista ético. Mas eu não acho que estas coisas aconteçam só no Brasil, porque a falta de ética, a arrogância, a falta de bom senso está espalhada pelo mundo. Um abraço da nossa terra.
Mario Luiz Cardoso
Oi, Marcelo!
O sistema judiciário do Brasil é vergonhoso... uma das coisas mais podres por aqui, além da política, sem dúvida é isso...
Disgusting!!!
Bjo e boa semana (apesar do aborrecimento!)
Luly :)
O Juiz pode até estar errado - e nestes casos parece estar mesmo - mas vocês tem que lembrar que o juiz está enfurnado em seu gabinete, e muitas vezes nem sabe o que está se passando. O Juiz segue a "letra fria da lei", se a lei diz que cabe deferir a cautelar em um mandado de segurança, ele defere. O que tem que ser mudado é o legislativo, o poder que faz as leis. O judiciário apenas as cumpre.
Mas como paliativo, é possível mudar o posicionamento dos juizados singulares (compostos de um só juiz, como nas Varas, que são os que dão este tipo de decisão). Uma comissão de médicos envolvidos no assunto poderia ter uma reunião com a Ajuris, associação dos Juízes, explicando sobre o que está acontecendo.
Vitor Borba.
Oi Marcelo; Eu sinceramente acho tanto a medicina como a advocacia áreas muito complicadas para nós leigos, termos muito próprios da área.
E na advocacia especialmente tem sempre algo nas entrelinhas que pode ser usado contra ou a favor. Termos jurídicos, contratos, etc .. ninguém entende só eles, ficamos presos ao conhecimento deles e daí usam e abusam. Então quando se trata de um caso de vida ou morte, as pessoas são capazes de tudo, passam por cima de qualquer um para sobreviver, usando até, como vc disse, a advocacia para passar a frente dos outros. É muito complicado e muito errado, mas cada um vai usar os artifícios que tem pela sobrevivência. É a lei da sobrevivência que passa a valer, infelizmente. E a justiça não tem nada de cega, ela encherga muito bem. bjs,
Marcelo, eu sei que não precisas de sugestão de pautas para os teus comentários, mas mesmo assim eu vou dar uma, mais para proveito próprio mesmo. Em 1999 eu estive visitando um amigo em uma cidade próxima de Toronto, Mississauga. O nosso amigo nos levou para conhecer um médico amigo dele que atendia num posto médico perto da casa dele. Fomos muito bem recebidos, até fomos vacinados contra gripe por conta do governo canadense. Este nosso amigo nos falou muito bem do sistema de saúde proporcionado pelo governo canadense, de forma que esta ficou sendo a minha impressão definitiva. Ontem assisti pela NET o filme canadense "Invasões Bárbaras", que mostra um lado frontalmente oposto à opinião que eu tinha e que me fora passado por um residente canadense. Mostra um sistema de saúde muito parecido com o nosso, com os pacientes internados em macas pelos corredores, diculdades de vagas para internação, corrupção para conseguir vantagens e tudo o mais que estamos cansados de saber do nosso SUS. Como és um profissional da área e estás vivendo justamente esta realidade, poderias nos dar uma visão atual do sistema vigente e elucidar esta minha dúvida. Um abraço
Mario Luiz Cardoso
Concordo com você sem dúvida Marcelo. Interpelação judicial neste caso é absurda. Não sei no que se baseia o juiz para tomar atitude tão desumana e INJUSTA.
Para seu conhecimento, fiz residência médica em Endocrinologia no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre.
Lá existe também um grupo de estudos em obesidade e já desde 2003 são realizadas cirurgias bariátricas. Em 2004, durante boa parte do ano, foram realizadas cerca de 2 cirurgias por semana.
O grupo de obesos também tem atendimento multidisciplinar incluindo endocrinologista, cirurgião, enfermeira, nutricionista e psicóloga, além de precisar acompanhar por ao menos 1 ano com toda essa patota antes de ser passível de realizar a cirurgia.
Do ponto de vista médico, ético e legal, nenhum médico é obrigado a realizar uma cirurgia bariátrica, mesmo por imposição judicial, tendo em vista que a cirurgia é eletiva e não se encaixa dentro de uma emergência médica.
Esses juízes estão agindo ilegalmente, ou melhor, os médicos estão cedendo facilmente à pressão pois em nenhum momento médico algum é obrigado a realizar procedimento ou mesmo atendimento médico em situação que não configure emergência médica.
Um grande abraço e tudo de bom para você!
Relamente isso é um absurdo cara. Não pode ser feito dessa maneira. Um juiz não pode decidir, com uma caneta e sem conhecimentos, quem deve ser operado primeiro. Absurdo.... Abraços!
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