terça-feira, março 01, 2005

A Semana

Essa é semana Cazuza, aqui no A Sopa no Exílio.

E para começar, desencavei lá do fundo do baú um texto escrito em 1990, dias após a morte dele, e que foi enviado por carta (lembram, correios e telégrafos?) para o Radica, um dos amigos fundamentais, se é que podemos ter algum tipo de hierarquia ou classificação entre nossos amigos. Se puder, o grau maior poderia ser o dos “amigos fundamentais”, e o Radica se encontra entre eles. Assim como o Márcio. E mais alguns poucos, que sabem que são.

Ah, a validade do texto é meramente o de registro histórico de uma fase, há muito passada. Depois do texto, a primeira letra da semana: Ritual.

O Fim

Faz um certo tempo, eu deveria ter uns doze, treze anos, quando eu ouvi pela primeira vez. Ainda não tinha nome próprio, era apenas um grupo, que tocava umas baladinhas bem interessantes. Já naquela época eu amava platonicamente uma menina de olhos verdes, loira, a mais linda que já conhecera. Freqüentávamos as festas noturnas do clube de praia, o chamado “mingau”, que começava por volta das nove horas da noite e terminava impreterivelmente às onze e meia. Depois desse horário íamos para casa dormir para no outro dia acordarmos cedo e irmos para praia.

Esse grupo eu ouvia só quando ia nestas festas, mas decorava algumas das letras e cantava com convicção "p'ro dia nascer feliz, o mundo acordar e a gente dormir, p'ro dia nascer feliz" ou então "quem tem um sonho não dança, bete balança o meu amor, me avise quando for a hora", ou, finalmente, "eu tô pedindo a tua mão e um pouquinho do braço", "teu corpo com amor ou não", "raspas e restos me interessam"... E assim foram os anos dourados de minha infância.

Os anos passaram, pessoas se foram e a banda se separou. E aí surgiu o seu nome pela primeira vez: Cazuza. Logo que apareceu cantava e declarava-se exagerado e medieval, mas eu ainda não conseguia entender bem o que ele queria dizer com tudo aquilo. E o meu amor pela garota dos olhos verdes continuava. Era um sentimento bonito, ingênuo e puro, que se manifestava mais na sua ausência do que em sua presença. E eu tinha quatorze anos.

E então vieram aquelas pessoas que mudaram minha cabeça. Aprendi a ser eu mesmo, a enfrentar os meus problemas de frente, admitir fraquezas e erros e a compreender os erros dos outros. Amadureci bastante, era feliz. Mas ainda amava aquela garota...Mesmo sem seu amor, vivi tempos inesquecíveis com esses caras: rimos, choramos, falamos de amor, solidão, enfim, vida. Ah, e viajamos. E foi numa destas viagens que outra mudança aconteceu ou, melhor, começou uma nova fase: minha primeira namorada. E, num dos primeiros momentos com ela, ele estava lá, num bar, inverno e uma televisão. Ele aparecia cantando "..invento desculpas, provoco uma briga, digo que não estou, vivo num clip sem nexo, um pierrot-retrocesso, meio bossa-nova e rock'n roll, faz parte do meu show, meu amor..."

Como num passe de mágica, eu podia compreender tudo o que ele dizia, era eu mesmo o "exagerado" querendo viver uma "paixão cruel, desenfreada" e imaginando dar "mil rosas roubadas" para esta namorada (que não tinha olhos verdes). Mas, mesmo com toda esta paixão, a minha inexperiência pesou mais e eu a perdi pela primeira vez, com o que, cheio de rancor, sentenciei: "Obrigado/ Por ter se mandado/ Ter me condenado a tanta liberdade". Outra vez ele no meu caminho. Logo após a tive de novo e a perdi para sempre, tendo descoberto, mais tarde, que, no dia em que ela se mostrara interessada em voltar para mim, eu deveria ter cantado - citando-o uma vez mais - "O teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer...". Só que aí já era muito tarde, e ela foi esquecida também. E eu tinha dezesseis anos.

Quis o destino que eu me separasse fisicamente dos caras que havia mudado o meu jeito de ser, e agora eu teria que andar com as minhas próprias pernas. Eu tive medo, mas com a força de vontade adquirida em três anos de aprendizado diário, consegui, aos poucos conquistar um lugar e pessoas. Em muitos momentos fiquei só, e aprendi com a solidão. Fiquei forte, cada vez mais forte.

Por outro lado, ele foi ficando fraco. Pego por uma doença mundana, adquirida de modo sujo e imoral, diziam. Eu me calava, às vezes sorria. Sabendo que aquilo era mais uma mesquinhez destes pobres seres humanos que se consideram normais. Eu sabia que qualquer um deles era mais doente do que ele, porque suas doenças não eram orgânicas, mas sim na alma, no coração. Enquanto ele piorava fisicamente, sua poesia evoluía geometricamente, talvez por saber que estava num caminho sem volta. Finalmente, sentenciou: "Senhores deuses me protejam, de tanta mágoa/ Tô pronto pra ir ao teu encontro, mas não quero, não vou, não quero...".

Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, sua voz se calaria e eu perderia um pouco do chão por onde há muito tempo eu vinha pisando. Mas preferia não pensar no assunto. Até que, num sábado de manhã, sete de julho, uma grande amiga minha me ligou com a notícia: Cazuza havia morrido. Fui à televisão e, em silêncio, ouvi o que diziam. Poeta de uma geração, amaldiçoado por aqueles que não o entendiam e símbolo de força para aqueles que se viam em suas letras. Morreu por ser o que cantava: exagerado.

A morte física foi sua última lição, o final do curso: "O tempo não pára". O corpo se foi, mas a música e a poesia permanecem. Morreu por castigo ou por que os deuses trazem para perto de si mais rápido aqueles que eles mais amam? Não sabemos. Sabemos que deixou um legado e, pelo menos um órfão, mas que está pronto e amadurecido o suficiente para pedir "...piedade, senhor piedade, p'ra essa gente careta e covarde...". É, realmente, muitos precisam.

Nisto se encerra uma fase na minha vida. Já fazia alguns dias que eu me sentia estranho, diferente, mas não sabia o que era. Hoje descobri: minha vida está tomando uma nova direção. Não sei exatamente qual é, mas é uma mudança, e todas são positivas. E eu tenho dezoito anos.


Ritual

Pra que sonhar
A vida é tão desconhecida e mágica
Que dorme às vezes do teu lado
Calada
Calada

Pra que buscar o paraíso
Se até o poeta fecha o livro
Sente o perfume de uma flor no lixo
E fuxica
Fuxica

Tantas histórias de um grande amor perdido
Terras perdidas, precipícios
Faz sacrifícios, imola mil virgens
Uma por uma, milhares de dias

Ao mesmo Deus que ensina a prazo
Ao mais esperto e ao mais otário
Que o amor na prática é sempre ao contrário
Que o amor na prática é sempre ao contrário

Ah, pra que chorar
A vida é bela e cruel, despida
Tão desprevenida e exata
Que um dia acaba

2 comentários:

Anônimo disse...

Acompanho a Sopa há alguns meses e acho que esse, foi um dos melhores temas que já li....
Vc está de Parabéns...

Anônimo disse...

There are a few books on the subject, some very